Atualmente, manter uma jogatina 100% digital nos consoles, em relação à forma de aquisição e interação com os títulos é completamente fácil. Além de games que podem ser comprados diretamente por plataformas dedicadas para essa finalidade, é possível adquirir videogames que já não contam com entrada para mídia física, reforçando a ideia de lidar apenas com arquivos via nuvem do que com cartuchos, CDs, DVDs ou Blu-Rays.
Agora transporte-se para 2009. Esse conceito, distribuição digital, colocado em prática por uma empresa brasileira. Um projeto nacional arrojado que acabou fracassando por ações equivocadas e uma certa falta de sorte. Neste artigo vou relembrar a história do Zeebo, console lançado pela TecToy em 2009.
Um cruzado na pirataria
A ideia de ter um console com distribuição 100% digital era para a TecToy uma alternativa viável, do ponto de vista do desenvolvimento, para atuar contra a pirataria. Inegavelmente, o mercado paralelo no Brasil acabou sendo crucial para tornar a marca PlayStation um fenômeno que segue até hoje.
Milhões de gamers que possuem hoje um PlayStation 4 ou 5 e adquirem seus jogos por canais oficiais, provavelmente cultivaram a paixão por diversas franquias graças a facilidade de comprar esses jogos em qualquer barraquinha da esquina, aliado ao fato da possibilidade do desbloqueio no PS1, PS2 e PS3.
Entretanto, por mais que a pirataria, em certa medida, impulsione a marca, e fomente um apelo entre a comunidade, isso é um grande problema, ainda mais considerando o segmento de consoles. Em que em muitas situações a empresa acabava subsidiando o hardware, forçando um preço competitivo, para então ganhar em cima da venda do software, dos games.
A TecToy via pelo retrovisor o que era o PlayStation 2 em termos de apelo no mercado brasileiro em meados dos anos 2000, e o impacto que a pirataria tinha sobre isso.
Um dos motivos pelo grande delay em relação ao lançamento oficial do PS2 no Brasil, comparado ao lançamento internacional, era justamente a pirataria. Em 2003, a Sony, que também passava pelo entreveiro com a Gradiente sobre o uso da marca PlayStation, alegava que mais 50% das vendas relacionadas ao PlayStation eram por pirataria.
A forma que a TecToy entendia para coibir isso no Zeebo seria seguir um caminho diferente para distribuição dos jogos. Nada de um player integrado, capaz de reproduzir CD/DVD, e, é claro, rodar jogos, que talvez pudessem ser copiados. Todo o seu conteúdo seria baixado através de uma rede 3G, chamada ZeeboNet.
Isto é, estamos falando de um console com uma integração direta à rede de telefonia celular. A empresa que iria fornecer essa possibilidade é hoje a queridinha do mercado mobile: Qualcomm, principal investidora do projeto, e a responsável por fornecer o chip central, o processador, para que o Zeebo acontecesse. Além da Qualcomm (que detinha mais de 40% da TecToy nos Estados Unidos), a empreitava também reunia outras 12 empresas pelo mundo.
O conceito do projeto surgiu da cabeça do mineiro Reinaldo Normand, que na época trabalhava na TecToy Mobile, divisão da TecToy voltada para jogos de celulares. Com o investimento da Qualcomm na jogada, nasceu a Zeebo inc, e o console Zeebo. Até 2008, mais de 17 milhões já tinham sido alocados para o projeto.
O nome Zeebo não tem um significado concreto. É apenas um nome aleatório, entre 70 opções colocadas à mesa para escolha.
De parceira a vilã
A ideia do que viria ser o Zeebo surgiu internamente na TecToy em fevereiro de 2006, partindo diretamente da linha traçada no tópico anterior: um console que pudesse combater a pirataria. Também era importante que ele fosse barato. Em termos de abrangência de mercado, o plano da Tectoy era atingir países da América Latina e com mais de 1 bilhão de habitantes (China e índia).
A comparação direta com o Xbox 360, e até mesmo o PlayStation 3, que chegou oficialmente ao Brasil em 2010, estava fora de cogitação em todos os aspectos. Dividiriam o mesmo espaço nas prateleiras, mas o Zeebo não foi pensado para jogadores hardcores.
O console apostava mais na questão da jogabilidade, interação, e uma espécie de alternativa para aqueles que não queriam pagar muito em um console. No entanto, franquias de peso como Quake, Resident Evil e Tekken também iriam figurar no Zeebo, assim como jogos exclusivos.
Infelizmente, a Qualcomm, diretamente responsável pelo projeto sair do papel acabou, contribuindo para que a ideia inicial do time de pesquisa e desenvolvimento não pudesse ser atendida, e uma gambiarra à brasileira teve que entrar em ação.
A gambiarra que permitiu o lançamento mas afundou o produto
Só de pensar em se aventurar a lançar uma plataforma que concorrerá com titãs, com muito mais grana para custear o projeto, a ideia já parece um salto de fé, e caso o trunfo central, que trouxe todos os envolvidos até ali, descamba, e vira algo completamente diferente, é impossível imaginar uma perspectiva positiva. Foi justamente isso que aconteceu com a Zeebo!
Como explicou André Faure, ex-gerente de marketing da Tectoy, em declaração ao The Enemy, inicialmente, a ideia era que o Zeebo utilizasse o primeiro Snapdragon. “O projeto foi criado para esse chip. 10 meses antes do lançamento do Zeebo, a Qualcomm avisa que o Snapdragon não ficará pronto a tempo”.
A TecToy então tinha uma decisão pra tomar: atrasar o produto, e esperar o Snapdragon ficar pronto, ou então ir pro mercado com o chip mais poderoso que a Qualcomm tinha naquele momento, porém ele não tinha GPU. Ou seja, incapaz de processar 3D nativo, destaca Faure.
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Faure relembra que a placa estava pronta para alocar o Snapdragon. Num arranjo “estilo LEGO”. O Snapdragon cairia ali como uma luva. Com o atraso da Qualcomm com o chip, e a decisão da TecToy de lançar o produto com um SoC inferior para a proposta do console, uma gambiarra teve que ser feita. Uma série de novas conexões que aumentavam o lag interno da placa, ocasionando uma queda de desempenho do chip. E não se esqueça: sem GPU.
Isso foi um verdadeiro desastre para a ideia inicial do projeto e sua usabilidade prática, considerando todas as atribuições necessárias para o processador naquele console, como, por exemplo, o gerenciamento da manutenção da rede 3G ativa e a responsabilidade de segurar o sistema que era considerado relativamente pesado. Com a ausência de GPU, o processamento para jogos ficou aquém do esperado.
Em novembro de 2008, com a apresentação oficial do produto, outro tiro no pé. A TecToy resolveu demonstrar Quake rodando no Zeebo. Um jogo da década passada, completamente defasado graficamente naquele momento.
Normand até tentou por panos quentes, o executivo frisou que o desenvolvimento, do ponto de vista gráfico, estava no nível do PSOne, mas que o chip integrado tinha potencial para muito mais. “Esperamos que em 12 meses ele possa mostrar gráficos parecidos com o do PS2 e PSP”, completou.
A chegada ao mercado
Avançamos para 2009, mais precisamente dia 25 de maio. Essa foi a data escolhido para a chegada oficial do Zeebo ao mercado com o preço sugerido de R$ 449. Inicialmente ele foi vendido apenas no Rio de Janeiro, e nos meses seguintes chegou aos demais estados do Brasil.
Além da possibilidade de comprar os jogos, convertendo o valor em dinheiro real em Z-Credits, uma espécie de moeda da ZeeboNet, acessado por meio de uma conexão 3G que usava tecnologia da Claro, o console vinha com três jogos grátis na memória: FIFA Soccer 2009, Need For Speed Carbon e Treino Cerebral. Os gamers também podiam baixar mais 3 jogos gratuitamente: Prey Evil, Quake e Quake 2.
Os grandes players do mercado não se sentiram nenhum pouco ameaçados pelo Zeebo. Quando indagado pela Folha de S. Paulo, em junho de 2009, sobre a aposta brasileira, Phil Spencer, que naquele momento era executivo da Microsoft Game Studios, declarou que sequer ouviu falar do Zeebo.
A Nintendo, por meio Reggie Fils-Aime, disse que o que realmente importa nesse negócio são os jogos, e que a Nintendo tinha a melhor linha de títulos. Enquanto Mark Stanley, da Sony declarou que tentar “abocanhar” uma fatia do mercado do PS2 era o caminho mais fácil. “O Zeebo quer pegar a futa mais baixa do pe”, resumiu.
Desde o início a TecToy fez mistério sobre o número de vendas. Em setembro de 2009, o Zeebo teve o seu primeiro corte de preço, uma redução de R$ 100 sobre o valor original. O console passou para R$ 399. Neste mesmo ano o console desembarcou no México e passou por um redesign. O controle foi modificado, e um teclado, para navegação em sites e uso com jogos educativos, foi agregado ao kit.
Em novembro mais uma redução. O preço sugerido caiu para R$ 299.
A TecToy também colocou no mercado um controle no estilo Boomerang, alinhado com a estratégia de focar nos jogos do estilo Party, já que graficamente o Zeebo não conseguiria apresentar algo muito representativo.
O apagar das luzes
Em 2011, a Qualcomm resolveu parar de injetar grana na empreitada. O desfecho não poderia ser outro: o adeus. O estúdio Zeebo Interactive foi fechado, e a trajetória do console no mercado brasileiro acabou em abril daquele ano.
Além de um ponto final no Zeebo, essa história também pode ser considerada como a aposta final de uma empresa brasileira no mercado de consoles, sobre o ponto de vista do desenvolvimento de uma plataforma. É bastante improvável, pra não dizer impossível, que algo assim seja tentado novamente.