Atualmente, é comum se deparar com a frase “isso é muito Black Mirror” quando são divulgadas tecnologias que podem dar errado.
Black Mirror é uma série de TV cujos episódios contam com tramas que envolvem tecnologias de comunicação e informação, mas de uma maneira não tão positiva.
Criada pelo roteirista e produtor Charlie Brooker, Black Mirror estreou em 2011 no Channel 4, na TV britânica, com duas temporadas de três episódios e um especial de natal.
Em 2014, após o especial de natal, executivos do Chanel 4 revelaram ao criador, Charlie Brooker, que a emissora estava com dificuldades financeiras para continuar a produzir novos episódios de Black Mirror.
No entanto, a Netflix ofereceu um contrato para produzir mais episódios de Black Mirror e, assim, a terceira temporada da série estreou em 2016. No ano seguinte, a Netflix lançou a quarta temporada, seguida por um filme, em 2018.
A quinta temporada estreou em 2019 e a sexta temporada já está em produção.
A série é uma antologia, ou seja, os episódios não possuem ligação entre si, mas a característica principal de Black Mirror é o fato de que os episódios sempre se centram em tecnologias.
Black Mirror, portanto, discute as tecnologias de comunicação e informação, as relações sociais intercaladas pelo uso de dispositivos digitais complexos, cuja perspectiva futurista e distópica é o pano de fundo para a narrativa dos episódios.
Um mérito da série é a abordagem de temas essenciais para o debate entre cultura, tecnologia e sociedade, embora com roteiros que priorizam o pessimismo.
Portanto, a expressão “isso é muito Black Mirror” descreve a aversão, a resistência, ou também, às vezes, a sensação de pavor e medo quando nos deparamos com similaridades entre as histórias de Black Mirror com as tecnologias atuais, sobretudo no final da última década.
Além disso, a expressão serve para ilustrar que algo apontado na série já está acontecendo ou pode existir em breve, ou seja, a série conseguiu fazer algumas previsões de tecnologias que já existem ou estão em desenvolvimento.
Por isso, reunimos neste artigo cinco tecnologias que já existem, ou surgirão no futuro, que foram temas de episódios de Black Mirror.
Tecnologias de Black Mirror que já existem
Hang The DJ (episódio 4, quarta temporada) – Aplicativos de relacionamento
Hang The DJ é um dos episódios de Black Mirror que contam com tecnologias que já existem e com outras que ainda não existem. Na verdade, a relação entre essas tecnologias ainda foi estabelecida, mas a ideia já está em prática.
Inicialmente, pode aparentar estranho incluir essa tecnologia na lista, pois plataformas para relacionamentos românticos já existem desde o início da internet. Nos anos 2000, no auge da internet discada no Brasil, muita gente encontrou sua suposta alma gêmea em alguma sala de bate-papo ou em sites como Par Perfeito.
Atualmente, não precisamos nem mencionar o que é o Tinder e qual o seu papel na vida da maioria das pessoas solteiras.
No entanto, Hang The DJ se passa em um momento pós-Tinder. A trama foca em Frank (Joe Cole) e Amy (Georgina Campbell), que utilizam um dispositivo para encontrar o seu “par perfeito”.
Com formato similar ao de uma bússola, o dispositivo se chama “Coach” (nome bastante sugestivo) e possui uma inteligência artificial que determina encontros românticos para os usuários até eles encontrarem o seu melhor par. O episódio informa que o Coach tem uma taxa de sucesso em combinações de 99,8%.
Além disso, o Coach também determina a duração do relacionamento, impondo restrições de contato através de um sistema de vigilância. Frank e Amy, portanto, são obrigados a cortar o vínculo após o prazo determinado pelo Sistema.
Essa é a primeira parte do episódio. O que ocorre após isso pode enfurecer quem ainda não viu a série, pois há uma grande reviravolta.
Sem spoiler…
Focando na síntese do Coach, Charlie Brooker, o criador da série e roteirista do episódio afirmou que a ideia para o dispositivo/aplicativo de relacionamento surgiu como uma analogia ao Spotify. Ou seja, similarmente ao Spotify, o Coach determina uma “playlist” de relacionamentos que alguém deve ter antes de encontrar a pessoa ideal.
Sobre a tecnologia, a diferença entre o Sistema e os atuais aplicativos de relacionamento é o fato de que o Coach se baseia no feedback do usuário para selecionar a combinação perfeita.
Os aplicativos de relacionamento, em contrapartida, não se importam muito com o feedback dos usuários, priorizando o uso de algoritmos complexos. Mas já ocorrem alguns avanços, como no caso do Tinder.
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Para alcançar o nível de precisão do episódio de Black Mirror, os aplicativos de relacionamento terão que se unir a outras tecnologias, como os dispositivos wearables, que podem monitorar informações biológicas, como a respiração e os batimentos cardíacos.
Reações hormonais também servem para determinar atração romântica, que podem ser coletadas pelos dispositivos e enviadas à nuvem para análises de dados.
Portanto, essa é uma das tecnologias de Black Mirror que já existem, porém, em tese, pois é necessária a união do algoritmo ideal com algum smartwatch.
Um exemplo é o aplicativo Once, que integra o FitBit ou Android Wear do usuário para detectar seu batimento cardiáco ao ver a foto do seu “match” e informá-lo em seguida se há atração.
Odiados pela nação (episódio 6, terceira temporada) – Drones insetos…
Com três temas dividindo a narrativa, último episódio da terceira temporada de Black Mirror é um ótimo exemplo da união entre tecnologias avançadas e problemas sociais.
“Odiados pela nação” se inspira na estética das séries criminais escandinavas e acompanha uma dupla de detetives que tentam desvendar a ligação entre as mortes de duas pessoas.
Ambas as vítimas foram mortas pouco tempo após serem alvos de comentários de ódio na internet e os seus sintomas foram iguais. Em uma das vítimas, após uma ressonância magnética, descobre-se que havia uma “abelha-drone” alojada em seu cérebro”.
Ao analisar os dois assassinatos, as detetives descobrem que essas abelhas foram desenvolvidas por uma empresa com o objetivo de ajudar na polinização do planeta, pois as abelhas reais estão em extinção no universo em que o episódio se passa.
As abelhas-drone são conhecidas na série como DAI (drone Autonomous Insect), que conseguem voar e polinizar flores sem a necessidade do controle humano direto. No entanto, a investigação descobre que o sistema foi hackeado por um ex-funcionário da empresa e usa as abelhas para matar as vítimas após suas retaliações online.
As abelhas-drone, ou DAI, que aparecem nesse episódio de Black Mirror são similares às tecnologias usadas em dispositivos como o DelFly Nimble e o RoboBee.
O Delfly Nimble foi apresentado em 2018 e é um drone miniatura que mede 33 cm e pesa 28 gramas, capaz de voar por 1 km. O RoboBee, desenvolvido pela universidade de Harvard, é um pequeno robô que também consegue alçar voo e pesa 80 miligramas.
Enquanto as abelhas-drone ainda estão em desenvolvimento, os dois outros temas desse episódio de Black Mirror — embora não sejam tecnologias — já existem: a cultura do cancelamento e o impacto ambiental.
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No episódio, em vez da tecnologia, o tema central é o impacto da disseminação do ódio pela internet e a sua resultante polarização, bem como o ideal de justiça social, que originaram a cultura do cancelamento.
Outro ponto central do episódio é a vigilância por parte dos governos, totalmente envolvida com os avanços tecnológicos, mas é melhor evitar o spoiler.
Volto já (episódio 1, segunda temporada) – Contato com os mortos
Mesmo sem assistir Black Mirror, certamente você já deve ter ouvido falar sobre esse episódio por um dos mais aclamados de toda a série.
“Volto já” conta a história de Martha, interpretada por Hayley Atwell (Capitão América), que perde seu namorado após esse morrer em um acidente de carro. Domhnall Glesson – que ganharia fama internacional posteriormente por seus papéis em O Regresso e na última trilogia Star Wars – interpreta o falecido namorado, Ash (nome sugestivo, pois significa “cinza).
Durante o período de luto, Martha descobre uma tecnologia nova que permite se comunicar com uma inteligência artificial que imita o comportamento de Ash. Assim, esse episódio de Black Mirror se desenvolve em torno de tecnologias como inteligência virtual e coleta massiva de dados.
O sistema de inteligência artificial apresentado no episódio compila as informações (imagens, textos, sons) que Ash deixou em suas redes sociais (Facebook, Twitter, Instagram).
A IA analisa o que ele dizia durante chamadas telefônicas e as piadas, ideias e pensamentos que Ash escrevia em suas redes sociais, bem como o comportamento do personagem diante de determinadas situações.
Além disso, o sistema coletava informações sobre as músicas que Ash ouvia e as fotos e vídeos feitas por ele em certos momentos e ambiente. Desse modo, a inteligência artificial conseguiu recriá-lo de maneira bastante fiel.
A Inteligência Artificial em “Volto Já” também permite que Martha faça ligações telefônicas ao falecido Ash, algo bastante chocante no primeiro momento.
O desenrolar do episódio se torna bastante distópico, mas Black Mirror conseguiu prever o surgimento de algumas tecnologias que permitem ter contato com quem já morreu.
Recentemente, a Amazon anunciou que a Alexa conseguirá imitar vozes de pessoas que já morreram para conectá-las com seus entes queridos.
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Mas, provavelmente, o projeto mais próximo ao do episódio é a rede social Eter9, que funciona através do uso de inteligência artificial e garante digitalizar a personalidade do usuário.
Assim, a Eter9 cria uma versão virtual do indivíduo que imita o seu comportamento e continua a funcionar após a sua morte.
Similarmente, o Eterni.me desempenha a função de coletar informações e interações em contas de redes sociais para criar um sistema de contato com quem já se foi.
Uma curiosidade interessante sobre o impacto desse episódio da série foi a criação de um chatbot pela engenheira russa Eugenia Kuyda. Kuyda conseguiu transferir a consciência do seu falecido melhor amigo em um chatbot.
A engenheira afirmou que a inspiração surgiu após ter assistido ao episódio da série.
No entanto, o que Black Mirror pretende discutir com esse episódio não são os avanços da tecnologia, mas sim a construção da personalidade do indivíduo pelo seu comportamento nas redes sociais.
San Junipero (episódio 4, terceira temporada) – Simulação virtual
Um dos episódios mais premiados de Black Mirror, vencedor de dois Emmys, San Junipero aborda tecnologias que lidam com a acensão da realidade virtual e dos universos simulados.
Ambientado em uma cidade fictícia que leva o nome de San Junipero, o episódio homônimo conta a história do casal Yorkie e Kelly, que se conheceram em um bar da cidade e se apaixonaram.
No entanto, o ambiente em que as duas se encontram é parte de uma realidade simulada para que idosos possam reviver suas juventudes — mesmo após a morte. San Junipero serve como uma extensão da vida para pessoas mortas, ou como espaço para experiências inéditas de pessoas que se encontram em estado terminal.
Assim, o mundo virtual é construído para o entretenimento, para a balada e curtição, onde os frequentadores podem também escolher a época em que visitam o local.
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O episódio, embora foque na década de 1980, apresenta vestígios de que é possível acessar períodos entre os anos 1970 e 2000. Os vivos podem acessar o sistema por até cinco horas por semana, para não viciar, conforme as normas da empresa que administra o mundo virtual, a tCKr Systems.
Os mortos tem suas consciências enviadas para uma nuvem e assim garantem uma experiência eterna.
Por ser o episódio mais futurista de Black Mirror, é difícil enxergar a possibilidade de que as tecnologias de realidade virtual consigam garantir a “vida eterna”.
Contudo, uma companhia chamada Rendever desenvolveu uma plataforma que permite que idosos em asilos consigam revisitar suas memórias através da realidade virtual.
A empresa utiliza a tecnologia como forma de “terapia de recordação” para ajudar os idosos a lidar com o isolamento social. Um sistema Rendever inclui quatro headsets VR e um tablet que contam com a infraestrutura e a rede de conteúdos personalizada da empresa.
Um veterano da força aérea americana afirmou ter conseguido retornar aos seus tempos de guerra no Japão há mais de 60 anos através do Rendever. “A melhor parte em usar Rendever é conseguir encontrar lugares conhecidos e compartilhar memórias com a minha família”, diz o veterano.
Toda sua História (episódio 3, primeira temporada) – Memória audiovisual/impante de chips
Considerado o melhor episódio de Black Mirror, “Toda sua História” encerra a primeira temporada – que foi lançada em 2011 -, com uma previsão macabra sobre o futuro de algumas tecnologias.
O episódio se passa em um futuro não tão distante marcado pelo uso quase geral de uma dispositivo cuja tecnologia permite gravar as vidas das pessoas. O dispositivo chamado “Grão” é um pequeno objeto implantado no cérebro das pessoas que possibilita registrar o que é visto pelos olhos.
A trama segue a trajetória do advogado Liam, que suspeita de uma traição de sua esposa. Assim, Liam começa a destrinchar suas memórias coletadas pelo “Grão”, assistindo repetidamente aos materiais.
Desesperado, Liam pergunta à sua esposa Ffion sobre a sua relação com um amigo chamado Jonas. Ela informa que houve um “lance” de apenas um mês, mas Liam mostra uma memória em que ela diz que o “lance” durou apenas uma semana.
Após uma reconciliação, Liam retoma o assunto com sua esposa, que revela que o relacionamento durou, na verdade, seis meses. Após vários conflitos, inclusive com Jonas, Ffifon revela a Liam que o traiu com Jonas, sendo ele o pai da filha do casal.
O fim do episódio termina com Liam usando uma navalha para remover o “Grão” do seu corpo, deixando-o o cego para sempre.
“Toda sua História” deixou muita gente preocupada com o que podemos alcançar em termos de avanço tecnológico, mas o episódio de Black Mirror não impediu que essas tecnologias fossem, no mínimo, cogitadas.
O Google Glass é um exemplo sobre tal capacidade, assim como uma lente de contato que a Sony desenvolveu para gravação audiovisual, mas são ainda bem distintos do “Grão”.
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A tecnologia que mais se aproxima do dispositivo que a série apresenta é o chip de implante cerebral que a Neuralink, de Elon Musk (quem mais?), desenvolve. O chip já foi implantado em macacos. Contudo, a intenção da companhia é utilizá-lo em pessoas com deficiências físicas para executar tarefas então impossíveis através de comandos cerebrais.
Além disso, Elon Musk afirmou que o chip poderia permitir a criação de backups de memória, aí chegamos à tecnologia de Black Mirror. Aliás, em um evento da Neuralink em 2020, Musk comentou sobre a similaridade do chip da Neuralink com a tecnologia de Black Mirror.
“Sim, eu acredito que no futuro você conseguirá salvar e reproduzir suas memórias. Enfim, obviamente isso soa “muito Black Mirror”, mas eu acho que a série é muito boa em prever [o futuro das tecnologias]”, disse Musk.
Além disso, Musk também citou a possibilidade de transferência da consciência humana, enfatizando as memórias, em uma espécie de ciborgue. Desse modo, de acordo com o que diz Elon Musk, futuramente também haverá uma espécie de San Junipero.
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Outras tecnologias que a série conseguiu prever
Como a lista contém apenas cinco tecnologias de Black Mirror que já existem, a decisão foi mesclar os episódios mais aclamados com as tecnologias as mais impactantes.
Portanto, ficaram de fora episódios que abordam o deepfake (Rachel, Jack, and Ashley Too, quinta temporada), o então não existente metaverso e os avatares virtuais (USS Calister, quarta temporada). Também deixamos de fora os cães robôs (Metalhead, quarta temporada) pelo próposito da tecnologia na série.
Se você já assistiu Black Mirror, deixe um comentário sobre alguma tecnologia abordada em algum episódio. Para quem não assistiu, vale a pena dar uma chance à série, principalmente quem se interessa no debate sobre os impactos negativos do avanço tecnológico.
Pessimista ou não, Black Mirror consegue representar fielmente a realidade atual das relações sociais após o grande salto tecnológico do século XXI. Por fim, como disse Elon Musk ao comentar sobre a previsões certeiras de Black Mirror, “o futuro será estranho”.
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