O tradicional currículo, documento que por décadas foi a porta de entrada para o mercado de trabalho, pode estar vivendo seus últimos dias. Com o avanço da inteligência artificial e suas ferramentas de geração de texto, qualquer pessoa agora consegue criar dezenas ou até centenas de currículos personalizados em questão de minutos, transformando completamente a dinâmica de contratação.
O problema não é apenas o volume de candidaturas, mas a crescente dificuldade em distinguir o genuíno do artificial. Recrutadores em todo o mundo relatam estar soterrados por pilhas de candidaturas praticamente idênticas, todas geradas por ferramentas de IA como ChatGPT ou Gemini.
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Junto ao problema da quantidade, a questão da fraude também preocupa. O Departamento de Justiça dos Estados Unidos recentemente anunciou a descoberta de um esquema para inserir cidadãos norte-coreanos em vagas remotas de TI em empresas americanas, usando identidades falsas. A consultoria Gartner estima que, até 2028, aproximadamente uma em cada quatro candidaturas a empregos poderá ser fraudulenta.
Os riscos vão além. Pesquisadores de segurança identificaram que sistemas de inteligência artificial podem esconder textos invisíveis em candidaturas, permitindo que candidatos manipulem os sistemas de triagem automatizada através de “injeções de prompt” — truques que os revisores humanos não conseguem detectar.
E mesmo quando as ferramentas de triagem baseadas em IA funcionam conforme o esperado, elas apresentam vieses similares aos humanos. Estudos recentes demonstraram que esses sistemas tendem a favorecer nomes tipicamente associados a homens brancos em currículos, o que levanta sérias questões legais sobre discriminação no processo seletivo.
No Brasil, onde a transformação digital dos processos de recrutamento vem se acelerando, especialmente após a pandemia, empresas já começam a sentir esses efeitos. Departamentos de RH reportam um aumento expressivo no número de candidaturas que parecem ter sido geradas por IA, muitas vezes com qualificações exageradas ou dificilmente verificáveis.
O futuro do recrutamento
Diante desse cenário, especialistas sugerem que os currículos estão perdendo sua função original como indicadores confiáveis de interesse e qualificação. Quando qualquer pessoa pode gerar centenas de candidaturas personalizadas com alguns comandos, o documento que antes demonstrava esforço e interesse genuíno numa posição se transformou em ruído.
O futuro do recrutamento pode exigir o abandono completo do currículo tradicional em favor de métodos que a IA não consiga replicar facilmente — sessões ao vivo de resolução de problemas, análises de portfólio, períodos de trabalho experimental, ou outras formas de avaliação prática.
Para os profissionais brasileiros, essa transição exigirá adaptação. A capacidade de demonstrar habilidades de forma prática e autêntica ganhará ainda mais relevância. Plataformas como LinkedIn já testam novas maneiras de verificar credenciais e experiências, enquanto empresas investem em tecnologias que possam identificar candidaturas geradas por IA.
Enquanto isso, empregadores e candidatos permanecem numa corrida armamentista tecnológica onde máquinas filtram a produção de outras máquinas, e os humanos que deveriam ser beneficiados por esses sistemas lutam para estabelecer conexões autênticas num mundo cada vez mais artificial.
O paradoxo é evidente: a mesma tecnologia que foi desenvolvida para tornar o recrutamento mais eficiente acabou criando novos desafios que podem exigir um retorno a métodos mais diretos e humanos de avaliação de talentos.
Fonte: Ars Technica