Sim, o sistema operacional é importante

Sim, o sistema operacional é importante

Why the OS Matters

Autor original: Kroc Camen

Publicado originalmente no: osnews.com

Tradução: Roberto Bechtlufft

Em resposta ao artigo de Jean-Louis Gassée, “o sistema operacional não interessa” (em inglês), digo apenas que o vencedor da guerra dos navegadores vai ser aquele que se integrar melhor ao sistema operacional. Tirei essa frase do meu artigo descendo a lenha na Microsoft por seu uso do HTML nas listas de atalho do IE9 (em inglês), o que causou muito burburinho. Nesses tempos de navegadores incluindo cada vez mais recursos, o sistema operacional vai ter mais importância para os usuários da web do que jamais teve.

Nos últimos quinze anos a grande rede mundial deu origem a uma interface de documentos de tamanha importância que chega a ofuscar o sistema operacional tradicional. Dá para fazer compras online, mas não dá para fazer compras usando um sistema operacional sem internet. Dá para ir ao banco online, mas não dá para ir ao banco usando um sistema operacional sem internet.

A inocência da web, que era apenas um formato de troca de documentos para o projeto do acelerador de partículas LHC, a protegeu no começo. O navegador web só tinha que exibir documentos simples, sem se aprofundar nas entranhas do sistema operacional (a primeira ferramenta de autoração para a web e o primeiro navegador surgiram na NeXT). Se o HTML tivesse tentado tomar o lugar dos aplicativos nativos naqueles tempos, seu fracasso teria sido retumbante, graças à sua incapacidade e lentidão.

Os primeiros aplicativos web só começaram a surgir com a popularização das linguagens de processamento no lado do servidor, especialmente do ASP. Ainda que o navegador não pudesse fazer muita coisa, tecnicamente o servidor do outro lado da linha podia fazer de tudo ao pressionar de um botão: enviar um email, tocar um alarme, lançar um foguete. Esse modelo era diferente daquele do software para desktops, que não podia (e de certa forma ainda não pode) presumir que o computador estivesse online para realizar qualquer tarefa no escritório. Mesmo o fenômeno do shareware na internet exigia que você telefonasse ou mandasse algo pelo correio para comprar um produto em um CD.

Lá pelos idos de 1996, os laptops começaram a se popularizar, conquistando o poder típico dos desktops e novos níveis de portabilidade. A internet por linha discada tinha virado moda, e a Microsoft queria integrar essa nova portabilidade ao Exchange Server.

Jim Van Eaton: Outlook Web Access – um catalisador para a evolução da web

Os aplicativos web tradicionais atualizam constantemente o documento sempre que alguma ação ocorre. Durante o desenvolvimento do Exchange 5.5 em 1996 e 1997, usamos quadros ocultos para fazer a comunicação com o servidor na hora de enviar mensagens. No entanto, nós ainda tínhamos muitos quadros sendo atualizados durante a navegação pela caixa de correio. Também desenvolvemos um applet Java para o controle de escolha de data na visão de calendário para melhorar a experiência de usuário, já que o DHTML nos navegadores da época praticamente não existia. No fim das contas, o applet não atendeu aos nossos requisitos de desempenho, porque a inicialização da máquina virtual era muito custosa. O OWA 5.5 tinha suporte mais encorpado do que as versões anteriores, mas ainda não oferecia o tipo de experiência de um aplicativo win32 […]

[…] O primeiro protótipo do OWA com DHTML foi criado com base em uma versão pré-beta do IE5. O IE5 era um avanço enorme. O IE4 foi um grande passo adiante, mas o 5 tinha muitas outras tecnologias integradas que nos permitiam aprimorar a experiência de usuário. Ele podia lidar com XML, mas era impossível fazer uma solicitação DAV pelo navegador, então incluímos um controle do ActiveX ao protótipo que tornou possíveis solicitações DAV como SEARCH, PROPFIND e afins. Foi feita uma demonstração do protótipo do OWA, e Bill Gates adorou. Isso nos deu moral para que fosse instalado no IE5 um componente do qual nós precisávamos, o XMLHTTP. Esse componente foi criado e implementado por Shawn Bracewell, da equipe do OWA. O Exchange bancou o trabalho, botando a equipe de desenvolvimento do OWA para criar o XMLHTTP em parceria com a equipe do Webdata do SQL Server.

(o que foi uma boa ideia, se considerarmos a ação judicial do Java no fim de 1997)

Apesar de não ter integrado o documento HTML ao sistema operacional de forma mais significativa do que já vinha acontecendo, isso tudo fundou as bases de sites que já não eram mais uma coleção de documentos interconectados. Eu sempre digo que a Microsoft não entende a web, mas sob a perspectiva dos desenvolvedores e das empresas (não dos usuários) ela entendeu sim, e cavalgou a loucura da bolha da internet que ganhava fôlego na época, chegando ao ápice em 2000. A bolha foi quando um monte de gente que não tinha muito talento recebeu uma baita dinheirama para criar sites. A maioria dos usuários ainda usava linha discada muito tempo depois da bolha (lembra do tempo em que você pagava mensalidades e por minuto de uso?), mas as aberturas em Flash e as toneladas de imagens eram muito comuns.

O resultado disso foi um enorme investimento comercial e o impulso que faltava para levar bancos nada modernos que não queriam arriscar pagamentos na internet a abrirem os braços para os “patrões” da internet e seu rico dinheirinho. Na época não dava para perceber essas coisas, mas hoje eu acho que esse foi o grande lance que finalmente deu à web um aspecto mais prático do que suas contrapartes no desktop. Mesmo se a web pudesse ter a cara e o cheiro de um aplicativo de desktop (desde a chegada do DHTML choveram tentativas de imitar a interface do desktop), ela não iria a lugar algum enquanto não fosse capaz de fazer algo melhor do que poderia ser feito no desktop. Poder comprar online é que mudou tudo. Era mais fácil criar, construir e atualizar um catálogo de itens pelo navegador do que escrever um aplicativo para interagir com um banco de dados C++ cafona do Windows, distribuí-lo em um CD e exigir que o usuário telefonasse para fazer seu pedido. Esse modelo não era nem um pouco divertido, e já era amplamente utilizado por listas telefônicas do tipo Páginas Amarelas e sistemas de compras B2B.

Apesar das telas de efeito, do código HTML macarrônico e da total ausência de técnicas de otimização para a web na época, temos que agradecer à linha discada por nos oferecer uma web na qual podíamos comprar tudo em um instante, e conferir quanto dinheiro ainda tínhamos do conforto do nosso lar, sem ter que fazer outra ligação telefônica – as lojas e os bancos não eram inovadoras o suficiente para criar sistemas desse tipo. A necessidade foi a mãe da invenção. Como não dava para usar o telefone enquanto usava a internet discada, o pagamento tinha que ser feito online. O usuário podia pagar pelo correio ou pelo telefone, mas isso jogaria um pepino enorme para os desenvolvedores de sistemas, que não tinham muita habilidade e teriam que lidar com essas informações. A sessão do navegador era rápida, simples e barata, ao contrário do outro modelo, que deixaria carrinhos de compras parados por um mês esperando que um cheque nebuloso chegasse pelo correio para pagar a conta. Se não fosse pela internet discada e pela bolha da internet, as compras online só teriam decolado com o iTunes em 2003… só de pensar nisso já sinto arrepios!

É bom observar que as mega corporações não têm bom gosto, e que não importa se a solução é horrorosa. Se ela cumpre a sua tarefa, então está valendo. Os aficionados por design podem se contorcer de desgosto ao ver um aplicativo web pavoroso substituir um aplicativo nativo e bem acabado, mas durante e após a bolha da internet, houve uma mudança tão grande nos negócios que, internamente, as grandes empresas se viram presas a aplicativos web mal desenvolvidos que até hoje fazem o inferno de muitas instituições, incluindo o governo britânico. A intranet exclusiva do IE nasceu ali. Foi essa mudança que fez com que aplicativos web fossem desenvolvidos no lugar dos aplicativos nativos, começando sua carreira dentro das empresas, antes do conceito vazar para o usuário final de outras maneiras.

Aí, veio o silêncio.
Nós conhecemos bem esses cinco anos de estagnação da web e a ascensão meteórica do Firefox.

O plano de negócios da Microsoft era o de oferecer o IE sem a intenção de lucrar, para atingir dois objetivos:

  1. Aumentar a dependência dos desenvolvedores, vinculando a web ao Windows, aumentando as vendas de seu sistema operacional a longo prazo […]

  2. Vender mais cópias do Visual Studio para que os desenvolvedores tirassem proveito do ActiveX, que oferecia tudo o que o HTML não podia oferecer.

A web chegou onde chegou em 2003, com 99% de uso do IE, porque ela não era um negócio para a Microsoft. Para a Microsoft, a web não era para gerar dinheiro. A web só vendia cópias do Windows e do Visual Studio e mais nada. Isso ficou evidente com a total e completa falta de grandes atualizações para o IE6 por cinco anos.

A Apple vai embarcar na onda da web?

Isso é interessante porque a integração do IE ao Windows, o monopólio total do IE e o ActiveX são o exato oposto da integração do sistema operacional! A Microsoft (e hoje a Apple) queria que a web continuasse sendo apenas a web, um formato focado em documentos, limitado pelos confins do navegador, e que jamais chegaria perto de substituir aplicativos tradicionais, especialmente o .NET, que na época era a menina dos olhos da Microsoft.

Um site vinculado a um sistema operacional específico não é integração do sistema operacional. Não dá para chamar de integração com o sistema operacional o fato da Adobe não ter versões de seus produtos para o Linux.

Como a web começou como um formato para documentos, ela não tinha esse conceito de ser específica de um sistema operacional (ela foi criada para resolver o problema da portabilidade de documentos nos vários sistemas operacionais utilizados em instituições científicas da época), e quando o navegador foi hackeado e expandido para se tornar uma interface para aplicativos, ele naturalmente diminuiu as diferenças entre os sistemas operacionais. Estou contando essa lenga-lenga toda porque ela é o motivo de estamos dizendo de forma tão indiferente que o sistema operacional não importa muito porque hoje “tudo está na web”.

Estamos jogando para escanteio o fato de que o navegador web, devido a diversos fatores (desejados ou não), não vem nos proporcionando uma experiência de usuário excelente, mas apenas razoavelmente satisfatória. Como os usuários da web não tinham que baixar e instalar software para cada empresa que visitassem na web para usufruir de seus serviços, o navegador foi hackeado para tirar o máximo proveito dessa única característica na qual ele triunfava sobre o software para desktops, embora fracassasse na tentativa de tirar o máximo proveito das convenções e tecnologias do sistema operacional para proporcionar uma experiência de usuário excelente. Mas e daí? As grandes empresas não davam a mínima para isso.

Hoje, o lance da web é oferecer uma experiência de usuário excelente. Com dois bilhões de pessoas na web, mudar o texto de um botão pode dobrar os lucros. Se seu site rodar 10% mais lento, você pode perder milhões. O design, a experiência e a velocidade dos aplicativos web agora são fatores tangíveis, geradores de lucros e armas contra a concorrência. Embora muitas das técnicas “avançadas” que temos hoje para a otimização de sites já pudessem ser aplicadas há dez anos, hoje as empresas conseguem farejar a grana, e passou a ser importante dar ouvidos a quem já falava nisso desde o começo.

Uma boa experiência de usuário anda de mãos dadas com o paradigma das expectativas, dos recursos e das interfaces do sistema operacional. Não dá para pegar uma interface para documentos, feita apenas para receber cliques do mouse vindos do desktop, e sair tacando controles via toque nela. A Apple abandonou o Flash no iOS não por motivos técnicos, mas por ele ser terrivelmente obtuso à mudança radical em relação ao desktop que o iPhone defende. Como o Flash tem que viver na prisão de um plugin, o usuário teria que interagir com ele de uma maneira especial, que foge ao comportamento “confiável” projetado para permear todo o sistema operacional. Sendo bem franco, o Flash era uma droga, e oferecer experiências ruins é sinônimo de perda de dinheiro, não só para o dono do site como também para a Apple na promoção do seu dispositivo. Para a Apple, em termos de vendas e lucros, era melhor excluir o Flash e pedir aos criadores de conteúdo que mudassem a web inteira do que tornar aceitável a experiência com o Flash no iPhone. Obviamente, outros dispositivos portáteis usam o Flash, mas que ele é uma droga, isso é. A melhor coisa que você pode fazer para aprimorar a operação do seu telefone e sua experiência de navegação na web é desativar essa porcaria. Só a Apple foi capaz de dizer que uma experiência razoavelmente satisfatória não era suficiente.

Numa surpreendente inversão de papéis (sobre a qual tratamos no artigo A Apple vai embarcar na onda da web?), a Microsoft aprendeu a parar de brigar com a web e abriu os braços para ela. Ela ficou tão para trás em comparação a outros navegadores que perdeu a capacidades de orquestrar tecnologias da mesma maneira que permitiu a criação do AJAX. O Internet Explorer 9 deve ter suporte ao HTML5 e a várias tecnologias e padrões relacionados avançadas ao ponto de poderem ser implementadas de maneira organizada e confiável.

É claro que aplicativos web moderníssimos e muito velozes em HTML5 “roubam” desenvolvedores que poderiam estar programando especificamente para tecnologias do Windows, e que preferem se concentrar em mais de um navegador (e consequentemente, em mais de um sistema operacional). No passado, a Microsoft acabava com essa ameaça usando táticas comerciais para destruir a competição e estagnar a web, mas essa opção não existe mais. Ela está perdendo mercado e não tem nada a oferecer com o IE8. Desta vez, a solução adotada pela Microsoft é a de competir não investindo em sites que só abram no Windows, mas sim em se certificar de que todos os sites funcionem melhor no Windows.

A Microsoft quer oferecer a melhor e mais rápida experiência na web com o IE9 e o Windows. Abra um mesmo site no Firefox e no IE9: o visual vai ser idêntico, mas a Microsoft quer que o IE9 seja uma opção claramente melhor. É aí que a aceleração por hardware entra em cena. A Microsoft está enraizando o navegador às máximas capacidades do sistema operacional, usando APIs que normalmente são destinadas a jogos e aplicativos de desktop. Os recursos de sites fixos (pinned sites) e listas de atalhos (jump lists) do IE9 são tentativas de fazer a web se comportar à maneira do Windows, aplicando os benefícios de experiência de usuário que ela afirma que o Windows 7 possui à tarefa que a maioria de seus usuários mais realiza no computador: navegar na web.

A interface do sistema operacional existe porque há muitas maneiras de se gerenciar várias tarefas simultâneas, e nós ainda estamos aperfeiçoando a forma como fazemos isso. A web não é diferente nesse sentido. É só ver a navegação por abas, por exemplo. Gerenciar mais de uma tarefa é coisa do sistema operacional, e não da web, e o sistema operacional tem a chance de melhorar a forma como gerenciamos nossa visão da web ao ponto de influenciar… as vendas.

Quem oferecer a melhor experiência de usuário vai atrair esses usuários. O Firefox era melhor do que o IE6, isso estava na cara. Hoje, as diferenças são menores e apenas oferecer suporte a um padrão não vai vender hardware nem software. Não vamos nos enganar: os padrões são para os desenvolvedores. Você pode fazer um site usando uma imagem mapeada, e muitos usuários nem vão notar a diferença para um site idêntico feito em HTML. O que importa para a Microsoft e para a Apple não é mais o conteúdo desses sites (como acontecia na guerra dos navegadores que veio antes desta), mas sim como esse conteúdo é desfrutado dentro da experiência do sistema operacional que o abriga. Seria difícil negar que o iPhone original aumentou muito as expectativas que se tinha de um navegador web de telefone celular. Já tentou usar o IE6 em um dispositivo com o Windows Mobile? O Opera Mini era bom, mas havia sido projetado com as expectativas para a web móvel em 2003, com cHTML3.2. Vejam como o Opera Mini mudou nas versões 4 e 5 (zoom, navegação na página, guias). Ele está tirando suas ideias de um novo tipo de web móvel, trazido à berlinda pela Apple.

Por que o navegador do iPhone era bom? Porque se comportava e reagia em sintonia total com o sistema operacional e o hardware. Isso é integração do sistema operacional. Isso é o futuro.

O Windows Mobile se esforçava tanto em ser um ambiente de desktop que até tinha um horroroso clique direito. O Opera Mini tentava ser o mesmo navegador em todos os telefones, e com isso não podia proporcionar a melhor experiência oferecida pelo telefone (e a culpa não é do Opera, mas sim dos fabricantes cegos de dispositivos móveis e de suas implementações asquerosas do Java).

Com o suporte a padrões começando a se alinhar nos navegadores, o que vejo hoje é que todos os navegadores têm o mesmo visual (abas no topo) e fazem as mesmas coisas (voltam, avançam, pesquisam), então a única maneira de ser diferente, conquistar usuários e fazer dinheiro é oferecendo a melhor experiência na web através da integração com o sistema operacional. Os aplicativos web precisam se assemelhar mais a aplicativos web, e não a páginas da web, porque suas contrapartes no desktop desfrutam de todo tipo de mimo oferecido pelo desktop e que não é oferecido pela web. A Microsoft enxergou isso com o IE9, e acho que esse é só o começo dos planos da Microsoft de vencer a concorrência oferecendo uma experiência melhor, com o “jeitão do Windows”. O bom é que isso não significa mais que os sites só vão abrir no IE 🙂

Hoje, o sistema operacional é mais importante do que jamais foi. Ele foi completamente ignorado pela web por dez anos, e agora se tornou relevante. Cada vez mais pessoas estão usando sistemas operacionais para acessar a web. A qualidade da experiência que essas pessoas têm é importante em termos reais e tangíveis, que as empresas são capazes de entender.

O sistema operacional ainda não está morto, ele só estava esperando a hora de brilhar de verdade.

Créditos a Kroc Camenosnews.com

Tradução por Roberto Bechtlufft <info at bechtranslations.com.br>

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