O Chrome OS e a morte do desktop livre: uma resposta

Chrome OS and the death of the Free desktop: a response
Autor original: Sam Tuke
Publicado originalmente no:
freesoftwaremagazine.com
Tradução: Roberto Bechtlufft

Este artigo é uma resposta ao texto “Como o Gnome e o KDE se destruíram mutuamente

O artigo “Como o Gnome e o KDE se destruíram mutuamente” é propositalmente direto e controverso. Ele é um convite à opinião e à crítica: não dá para decretar que dois dos mais conhecidos e usados projetos de software livre estão “mortos” sem invocar a fúria coletiva.

Uma parte essencial da argumentação do autor é a de que o Google Chrome OS provavelmente será valioso para o público e amplamente utilizado. Eu gostaria de contestar a primeira parte dessa afirmação.

Algumas das ideias do Chrome OS também me interessam, mas não vamos nos apressar nas boas-vindas aos conceitos por trás do novo produto do Google.

“O Google está prometendo uma mudança para lá de necessária na forma como computadores pequenos trabalham. Problemas como atualizações de software, backups, instalações, manutenção e vírus vêm atormentando o mundo há muito tempo; já estava na hora das coisas mudarem”

Sim, o Google basicamente promete ‘gerenciar’ suas atividades com o computador por você, tirando a responsabilidade dos ombros dos usuários. É mais ou menos como contratar uma faxineira: alguém vai arrumar sua bagunça para você, e se certificar de que seu local de trabalho seja mais limpo e seguro. O Google cuida do espaço em disco, de problemas com o sistema de arquivos, dos backups etc. O preço? O controle sobre seu ambiente de trabalho. “Problemas” como decidir como sua máquina funciona e verificar se ela está bem protegida são tarefas do Google.

No entanto, ao contrário da maioria das faxineira, o Google está oferecendo seus serviços ‘de graça’. Ou seja, tem alguém fazendo faxina de graça no seu escritório, e você sabe que essa pessoa tem que receber algo em troca do tempo que passa lidando com a sua bagunça. Contratar essa pessoa significa confiar em alguém que vai ter acesso não vigiado e irrestrito às suas informações, mas é óbvio que essa pessoa precisa ganhar a vida com o que ela vai encontrar por lá.

Essa não é a minha ideia de progresso. Não me parece nem um pouco seguro. As ameaças de segurança não vão desaparecer só porque o Google diz que vai ser assim – a diferença é que você não vai ter a menor ideia de como o Google lida com elas. Tirando os riscos à privacidade, cobrir com o grosso manto corporativo do Google todos os aspectos técnicos e práticos de um sistema operacional é o pesadelo de qualquer professor de TI – será que chegamos tão longe com o GNU/Linux, tornando possível investigar, estudar e reorganizar todos os aplicativos do seu computador, só para voltarmos vários passos para trás, rumo a uma situação na qual temos ainda menos ideia de como o computador funciona do que quando rodamos o Windows? Migrar a maior parte do código que alimenta seus aplicativos para uma máquina remota guardada pelo Google impõe uma distância extra entre você e a tecnologia na qual você confia. Ainda não se sabe ao certo até que ponto o Chrome vai ter o código aberto. Eu aposto que o Google só vai divulgar o código que for obrigado a divulgar.

Agora que já expressei minha preocupação de que o advento do Chrome seja uma coisa ruim, vamos dar uma olhada nas outras afirmações do autor sob essa nova ótica.

“Mas para mim, essa mudança que está prestes a acontecer só mostra o que muita gente passou um bom tempo tentando negar: o KDE e o GNOME se destruíram mutuamente”

“Você é o Google e quer oferecer o sistema operacional para a próxima geração de usuários. A pergunta é: qual ambiente de desktop você vai oferecer a esses novos usuários? O KDE? O GNOME?”

“se o GNU/Linux tivesse um único conjunto de bibliotecas de desktop, um único ambiente de desktop, um único conjunto de padrões para a reprodução de áudio e assim por diante, essas bibliotecas estariam no Google Chrome OS”

Acho que uma coisa não tem nada a ver com a outra. O Google Chrome OS não é um sistema operacional comum. Na verdade, segundo os meus padrões, ele está longe de ser um sistema operacional tradicional. No meu entender, ele apresenta poucas semelhanças com os desktops tradicionais baseados no KDE e no GNOME. De onde veio essa conclusão de que a abordagem diferente do Google com o Chrome OS indica o fracasso do Gnome e do KDE em atender aos requisitos do Chrome OS? O artigo parece defender que se os desktops livres fossem uma coisa única e homogênea, o Google teria optado por desenvolver um sistema GNU/Linux mais tradicional.

Pois me parece bem mais provável que o Google já quisesse desde o princípio um novo tipo de sistema operacional que desse a ele o controle sobre os dados do usuário e que não deixasse espaço expressivo para a privacidade. Afinal, esse é o princípio que move várias outras tecnologias do Google. Acho que um navegador parece ser um lugar mais lógico para começar a desenvolver um sistema desses do que um pesado ambiente de desktop desenvolvido para instalação local. Na minha opinião, o Chrome OS é fundamentalmente diferente de um sistema baseado no Gnome ou no KDE, e por mais unificados que esses desktops fossem, eles simplesmente não seria propícios à adaptação para thin clients da web do Google.

Não acho que se possa considerar uma falha desses dois projetos inovadores o fato de seus objetivos não preverem os requisitos tecnológicos do Chrome OS.

“O risco é o Google deixar uma questão importante dessas nas mãos de desenvolvedores independentes”

Pessoalmente, não acho que seja ruim poder empacotar os aplicativos que mantenho para uma nova plataforma (hipoteticamente falando, pois não sou mantenedor de pacotes). Na minha opinião, o risco é o contrário: que só o Google possa disponibilizar aplicativos no Chrome, e que desenvolvedores “não Google” não tenham autonomia ou informações sobre como implementar seus programas (se é que os programas deles vão ser incluídos). A preocupação de que os desenvolvedores de software livre tenham controle demais sobre seus aplicativos em uma plataforma não parece típica do software livre. Se o Chrome OS se tornar mesmo incrivelmente popular, será que você realmente vai querer que o Google seja o ditador totalitário dele?

“Quem diz que a concorrência é positiva, e que é bom o GNU/Linux ter dois ambientes de desktop competindo, está louco. Os prejuízos que essa concorrência causou ao GNU/Linux são imensos”

Quer dizer que podemos medir o mal causado pela coexistência desses dois projetos segundo a inclusão ou não deles no novo produto de uma das empresas mais monstruosas do mundo, produto esse que é fundamentalmente diferente da natureza e dos objetivos do Gnome e do KDE? Não avalio um desktop pensando se ele vai proporcionar ao Google (ou à Microsoft, à Sun ou a qualquer outro gigante corporativo) uma plataforma perfeita para restringir e aleijar os direitos e as liberdades dos usuários.

Não vou entrar em detalhes, falando sobre como a escolha é um princípio e um benefício fundamental do software livre, ou sobre o fato de existirem bem mais do que apenas dois desktops e como isso é bom. Nós já estamos bem familiarizados com essas ideias, e presumo que o autor as tenha ignorado não por negligência, mas para ser mais breve.

Na minha opinião, a competição entre o KDE e o GNOME tem sido boa para ambos. Não posso prever o que teria acontecido se só houvesse um cavalo disputando essa corrida, e não estou envolvido com o desenvolvimento de nenhum desses sistemas a tempo suficiente para saber o quanto essa competição os afetou internamente. Porém, sei que os dois projetos trabalharam juntos extensivamente para trocar lições, e que ao menos nesse sentido eles vêm tendo uma relação simbiótica há anos. Eles oferecem experiências diferentes aos usuários, tecnologias diferentes para o desenvolvimento e inovações que muitas vezes apontam para direções divergentes e complementares. É só dar uma olhada nas discussões que surgem em torno de cada nova versão do KDE para constatar se a existência de um grande e único ambiente alternativo ajuda a determinar as necessidades e desejos de seus usuários.

“Adeus, desktop”

Essa frase certamente é um exagero. E se vamos mesmo dizer adeus ao desktop, podemos concluir algo bem maior do que a ideia de que o Gnome e o KDE deveriam ter se tornado uma coisa só. Pelo menos para mim, esse adeus vai significar que o software livre morreu (se seu software nem sequer roda na sua máquina, você está mais distante do que nunca das liberdades fundamentais). Vai significar que o Google redirecionou décadas de uso de computadores desktop como os conhecemos para uma nova plataforma, uma nova tecnologia, um novo conceito. Suspeito que isso significaria que por melhor que fosse o trabalho do software live, ele não seria o suficiente para triunfar sobre os recursos inesgotáveis do Google.

E nesse sentido, se o Google tivesse nos transformado a todo em usuários de thin clients web, e tivesse feito isso com a ajuda da tecnologia dos desktops de código aberto, eu certamente não consideraria isso uma vitória do software livre. Para mim, isso significaria que nós, enquanto comunidade, demos ao Google o poder de fogo para acorrentar a todos nós. Eu sentiria mais raiva do Google se nós tivéssemos possibilitado a vitória histórica dele sobre os usuários de computadores.

Sendo assim, eu discordo fundamentalmente com o autor no ponto de que o Chrome OS seria uma coisa boa. Discordo da ideia de que um único ambiente de desktop GNU/Linux serviria melhor às necessidades de seus usuários ou desenvolvedores. E discordo ainda mais da ideia de que faça sentido medir o sucesso do KDE ou do Gnome sob o critério de que sejam merecedores da inclusão no Chrome OS.

Declarar esses projetos bem-sucedidos e extremamente criativos como “mortos” segundo essa ótica significa não entender o motivo da existência deles. Eles oferecem a liberdade e a escolha a usuários de computador de todo o mundo. Ser um componente essencial de uma nova tecnologia que busca dominar, controlar e espionar milhões de usuários não é algo que atenda aos propósitos desses projetos, e não seria vitória alguma.

Créditos a Sam Tukefreesoftwaremagazine.com
Tradução por Roberto Bechtlufft <info at bechtranslations.com.br>

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