Você já imaginou que uma tecnologia usada para monitorar milhares de pessoas no sistema de justiça criminal teve sua origem em uma história em quadrinhos do Homem-Aranha? Pois é, a tornozeleira eletrônica, que hoje desempenha um papel crucial na justiça, foi inspirada por uma ideia que surgiu nas páginas de um jornal dos anos 1970.
Vamos mergulhar nessa história curiosa e entender como um super-herói ajudou a moldar uma ferramenta que hoje em dia é tão amplamente usada em tantos países.
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Uma ideia nascida nos quadrinhos
Nos anos 1970, o Homem-Aranha, criado por Stan Lee e desenhado por John Romita, era uma febre nos jornais americanos com suas tiras diárias de The Amazing Spider-Man. Em uma trama publicada entre agosto e setembro de 1977, o vilão Rei do Crime (Kingpin) coloca um dispositivo de rastreamento no herói para monitorar seus movimentos. Essa ideia, que parecia apenas mais um truque do vilão para derrotar o teioso, acabou plantando uma semente na mente de um juiz do Novo México chamado Jack Love.
Love, que trabalhava no condado de Bernalillo, ficou intrigado com a possibilidade de usar um dispositivo semelhante para monitorar pessoas condenadas por crimes menos graves. Ele imaginou que, em vez de manter essas pessoas presas, poderiam cumprir suas penas em casa, sob vigilância eletrônica. Inspirado pelo quadrinho, ele decidiu transformar a ficção em realidade.
Do papel para a realidade
O juiz Love não perdeu tempo. Ele procurou Michael Goss, um engenheiro do Colorado, para desenvolver um dispositivo que pudesse rastrear a localização de pessoas em liberdade condicional ou em prisão domiciliar. Goss, que apelidou o aparelho de “algemas eletrônicas”, viu um potencial enorme na ideia. O resultado foi o Goss-Link, um dispositivo do tamanho de um maço de cigarros que se comunicava com um receptor conectado ao telefone fixo da casa do usuário. A cada 60 segundos, o aparelho enviava um sinal, e, se a pessoa se afastasse mais de 45 metros de casa, o sistema alertava uma central.
Curiosamente, o primeiro a testar o Goss-Link foi o próprio juiz Love. Ele colocou o dispositivo no próprio tornozelo, inclusive durante o banho, para entender como ele funcionava na prática. “Era como estar preso por uma coleira muito curta”, ele descreveu em uma entrevista de 1983. A experiência o convenceu de que a tecnologia poderia ser uma alternativa viável à prisão para casos específicos, como motoristas alcoolizados ou pessoas em programas de trabalho.
Os primeiros passos e desafios
Em abril de 1983, Love iniciou um projeto piloto com três pessoas. O primeiro caso foi um homem condenado por emitir cheques sem fundo, que tinha um bebê recém-nascido em casa. Ele cumpriu sua pena de 30 dias com a tornozeleira, mas acabou preso novamente dois meses depois por furto. O segundo participante, um veterano da Guerra do Vietnã, violou a condicional ao receber bens roubados e acabou voltando para a prisão após aparecer bêbado no quinto dia de monitoramento. O terceiro, condenado por dirigir embriagado pela segunda vez, completou sua pena sem problemas, mas não há registros sobre sua trajetória posterior.
Apesar dos resultados mistos, Love considerou o teste um sucesso, comparando-o ao voo pioneiro dos irmãos Wright: cheio de falhas, mas promissor. No entanto, o projeto foi interrompido pelo Supremo Tribunal do Novo México. O motivo? Love havia assinado um contrato com Goss sem consultar outros juízes do condado, violando leis de compras públicas. Mesmo assim, a semente já estava plantada.
A expansão de uma ideia
A ideia de Love se espalhou rapidamente. Entre 1983 e 1988, várias empresas começaram a oferecer dispositivos de monitoramento eletrônico nos EUA, e cerca de 20 estados e condados adotaram a tecnologia. A primeira cidade a comprar o Goss-Link após o projeto piloto foi Lake County, em Illinois, que encomendou 15 unidades em 1983. Goss, que deixou seu emprego na Honeywell para fundar a NIMCOS (National Incarceration Monitoring and Control Services), também inovou ao sugerir que os próprios condenados pagassem pelo uso do dispositivo — uma prática que persiste até hoje, com custos que podem chegar a milhares de dólares em algumas regiões.
Nos anos seguintes, a tecnologia evoluiu. O sistema original, que dependia de telefones fixos, foi substituído por GPS, permitindo um rastreamento muito mais preciso.
De uma tira de quadrinhos do Homem-Aranha a uma indústria bilionária, a tornozeleira eletrônica mostra como a ficção pode inspirar inovações que transformam a realidade. O juiz Jack Love, com sua visão inspirada por um super-herói, abriu caminho para uma tecnologia que continua a moldar o sistema de justiça moderno.