Prepare-se. Se você acha que já viu polêmicas envolvendo games como GTA ou Mortal Kombat, talvez não conheça um dos capítulos mais sombrios da história dos videogames. Estamos falando de Hong Kong 97, um jogo obscuro lançado para o Super Famicom, a versão japonesa do Super Nintendo, que não apenas cruzou os limites do mau gosto, como praticamente os destruiu.
O contexto absurdo por trás de Hong Kong 97
O ponto de partida desse delírio digital foi um momento tenso da história mundial: a devolução de Hong Kong para a China, em 1997. Só que, em vez de refletir sobre o impacto geopolítico do evento, o jogo transformou isso em um enredo grotesco.
A missão é tão surreal quanto ofensiva. Você controla Chin, apresentado como um parente distante de Bruce Lee — embora, na prática, o sprite claramente se baseie em Jackie Chan. Seu “objetivo”? Exterminar toda a população chinesa, estimada na época em mais de um bilhão de pessoas. O próprio jogo ironiza: se você eliminasse um inimigo por segundo, precisaria jogar ininterruptamente por 38 anos para completar a missão.
O “chefe final” não economiza no deboche. Uma cabeça flutuante representa Deng Xiaoping, então líder da China, surgindo no meio da tela para encerrar essa sequência de insanidades.
Jogabilidade sofrível e trilha sonora que tortura os ouvidos
Se o roteiro já pode soar como ofensivo, a jogabilidade consegue ser igualmente desastrosa. O jogo adota o estilo de shooter vertical, no melhor estilo navinha, mas com uma execução tão amadora que beira o injogável.
Existe apenas um nível. Uma única música toca em loop, extraída das primeiras linhas da canção patriótica chinesa “Me Gusta Pekín Tiananmen”. Sim, uma provocação direta. Enquanto isso, uma enxurrada de inimigos genéricos ocupa a tela, cada um simbolizando cidadãos chineses, que caem um após o outro em meio a explosões, sprites mal recortados e violência gratuita.
Ao fim da breve, caótica e desconfortável experiência, surge o tal chefe: a cabeça decapitada de Deng Xiaoping.
O uso indevido de Bruce Lee, Jackie Chan e… cadáveres reais
Se o absurdo tivesse parado na trama, já seria grave. Mas não. A capa do jogo estampa sem autorização o rosto de Bruce Lee. O personagem principal, Chin, é uma representação visual descarada de Jackie Chan, igualmente utilizada sem qualquer permissão.
E então vem o pior: o jogo incorpora imagens digitalizadas de vítimas reais do Holocausto e da Guerra da Bósnia. Cadáveres aparecem como sprites de inimigos mortos e também na tela de Game Over. É uma escolha criativa que não apenas choca, mas que ultrapassa qualquer linha ética, humana ou moral.
Lançamento pirata, em disquete, fora do controle da Nintendo
Hong Kong 97 nunca chegou perto de ser aprovado pela Nintendo. O jogo foi lançado clandestinamente, distribuído em disquetes por meio de um acessório paralelo, similar ao Disk System do Famicom. Isso permitia rodar softwares não licenciados no Super Famicom.
O número de cópias físicas foi extremamente limitado. Esse fator, somado à sua natureza proibida, acabou transformando o jogo em uma espécie de lenda obscura entre colecionadores e curiosos da história dos videogames. Mas, claro, sua ROM circula com facilidade na internet até hoje.
O mistério da tela de Game Over: quem era aquele rosto?
Por anos, uma pergunta pairou entre os poucos jogadores e pesquisadores que se debruçaram sobre esse título macabro: quem era a pessoa exibida na tela de Game Over, acompanhada da data 8 de junho de 1992?
Após investigações em fóruns como Reddit, a resposta surgiu. A imagem foi retirada de um documentário sobre a Guerra da Bósnia e mostra uma das vítimas do conflito. Nunca houve autorização para esse uso.
Quem está por trás desse jogo?
O responsável por esse projeto é Yoshihisa Kurosawa, um empresário e ensaísta japonês. O desenvolvimento técnico ficou nas mãos de um programador que, até hoje, prefere se manter no anonimato. E não é difícil entender o motivo.
Foi só em 2018 que Kurosawa quebrou o silêncio sobre o jogo, em entrevista ao South China Morning Post. Segundo ele, a ideia era criar uma sátira. Uma crítica ácida tanto ao regime chinês quanto à política da Nintendo, que, na visão dele, sufocava a criatividade dos desenvolvedores independentes com seus padrões rigorosos de qualidade.
Arrependimento
Décadas depois, Kurosawa admite que se arrepende. Reconhece que Hong Kong 97 foi um erro. Um experimento irresponsável, que nasceu de uma combinação perigosa entre provocação, descaso e imaturidade.
Hoje, ele prefere que o jogo simplesmente seja esquecido. Mas o estrago, esse, já foi feito.
Se você imaginava que nada poderia superar as polêmicas de GTA, Manhunt ou Postal, saiba que existe um título que não apenas cruzou a linha — ele destruiu qualquer conceito de limite. E deixou uma marca que a indústria dos games preferiria varrer para debaixo do tapete.