Mark Shuttleworth on companies and free software
Autor original: Jake Edge
Publicado originalmente no: lwn.net
Tradução: Roberto Bechtlufft
Durante o Ubuntu Developer Summit, em Budapeste, eu conversei por uma hora com o fundador do Ubuntu e da Canonical, Mark Shuttleworth, sobre diversos assuntos. Em sua apresentação de abertura no UDS, ele disse que queria “defender” os contratos de colaboração, algo que já tinha tentado fazer antes sem muito sucesso. Desta vez ele apresentou uma visão bastante diferente sobre como aumentar a adoção do Linux e do software livre, especialmente no desktop, para atingir seu objetivo de chegar a 200 milhões de usuários do Ubuntu nos próximos quatro anos. Nem todos os leitores vão concordar com algumas das afirmações de Shuttleworth nesse sentido, mas vale a pena entender as ideias dele.
A participação das empresas no software livre
Na visão de Shuttleworth, a participação das empresas é vital para levar o desktop Linux a um novo patamar, e não existe um caminho que empresas que trabalhem exclusivamente com software possam seguir para passar a produzir software livre. Existe um largo “desfiladeiro coberto por espinhos” entre o mundo proprietário e o mundo das licenças livres. As empresas que nem sequer tentam seguir um rumo “mais livre” são ignoradas pela comunidade, e as que tentam dar seus primeiros passos nesse sentido são “hostilizadas” e “menosprezadas”. Ou seja, as empresas têm que saltar o desfiladeiro num salto só ou enfrentar a ira dos “defensores das ideologias” da comunidade. Isso forma uma “situação perversa na qual as empresas que tentam aderir têm a pior experiência”, segundo ele.
A comunidade tem uma tendência a distorcer os motivos das empresas, e até a ter medo delas, mas esse é “um medo infantil”. Decisões tomadas com base nesse medo serão decisões ruins. Assim como as pessoas, as empresas têm diversas motivações. Algumas se alinham aos interesses da comunidade, e outras não. Citando como exemplo o caso do Debian, que acha que a licença GNU FDL não é livre, enquanto o próprio Debian não é tido como uma distribuição livre segundo as diretrizes da FSF, ele observou que a comunidade não pode nem sequer definir o que seria uma organização “totalmente livre”. Esse tipo de controvérsia acaba “nos condenando a uma discussão eterna”. Como essa situação não é muito bem definida, as “empresas profissionais de software” provavelmente não vão se dispor a aturar a infelicidade da comunidade para começar a trilhar o caminho que a comunidade quer que elas trilhem.
Basicamente, Shuttleworth acredita que é essa postura anticorporativa e intolerante a licenças não livres que impede o software livre de avançar. Para algumas pessoas, “a ideia de liberdade é mais importante do que a realidade”, e essas pessoas podem “morrer felizes” sabendo que seu ideal nunca foi violado, mas esse não é o melhor caminho para o software livre, nem para sua adoção e expansão. Os “defensores da ideologia estão tirando do software livre” a chance de obter mais participação corporativa. É preciso que haja um “entendimento mais maduro de como o software livre pode crescer”, diz ele.
A participação atual das empresas no software livre
Obviamente, há empresas que contribuem com o software livre, mas essas empresas “fazem mais do que desenvolver software”. Ele comenta que a Intel, como fornecedora de hardware que quer vender mais placas, e o Google, que oferece serviços, são exemplos desse tipo de participante. Também temos as empresas de distribuições, como Red Hat, SUSE, Canonical e outras, mas elas têm pouco interesse em ver os projetos de software livre ganharem poder (no sentido de gerarem renda por conta própria), segundo ele, porque dessa forma as pessoas só vão conseguir suporte ou “garantias envolvendo o software” por meio das empresas de distribuições.
Embora algumas pessoas na Canonical discordem dessa abordagem de dar poder aos projetos, visto que ela reduz os rendimentos da empresa, Shuttleworth defende os contratos de colaboração para tentar fortalecer os componentes que formam as distribuições. “Isso vai enfraquecer a Canonical”, diz ele, mas vai dar mais força ao ecossistema. Segundo ele, é preciso investir mais nos componentes, e para isso os componentes precisam ter mais poder. Parte desse poder viria dos projetos que são donos do copyright do código. Independente desses projetos serem de propriedade da Canonical ou de outra empresa, ou mesmo de uma fundação, a posse do código dá poder a esses componentes.
Outro motivo para que Shuttleworth assuma “uma visão pública forte” diante dos contratos de colaboração é oferecer alguma cobertura àqueles que possam estar interessados em usá-los. Ele tem “alta tolerância a críticas” e gostaria de ajudar a trazer “mais empresas interessadas em software” para o ecossistema do software livre. Até agora “eu não recebi propostas dos defensores de ideologias” para que esse objetivo seja atingido.
As empresas podem estar mais dispostas a abrir o código e participar se souberem que também podem oferecer seu código sob condições diferentes. Isso exige que, pelo menos de vez em quando, os colaboradores estejam dispostos a fornecer seus patches ao projeto. Quem não estiver disposto a fazer isso vai estar apenas emprestando seus patches ao projeto, e “emprestar um patch não é legal”. Os “fundamentalistas” que não estejam dispostos a contribuir com seu código mediante uma atribuição de copyright (mesmo mantendo amplos direitos sobre o código em questão) simplesmente não estão sendo generosos, segundo ele.
A situação do software livre hoje
Shuttleworth diz que o objetivo deveria ser o de “atrair a máxima participação possível para os projetos que tenham um elemento livre”. Ele não está “defendendo o software proprietário”, mas está cansado de ver software que está “80% completo”. Além disso, os aplicativos de software livre para o desktop de modo geral estão bem atrasados em relação às suas contrapartes proprietárias em termos de funcionalidade e usabilidade. Ele gostaria de “fazer parceria com empresas que fazem as coisas acontecerem”, destacando especificamente a Mozilla como uma dessas organizações.
Segundo ele, o medo de que nosso código seja transformado em código proprietário nos impede de avançar. Enquanto isso, temos muitos projetos que só estão 80% completos, e sem documentação. Muitos desses projetos acabam caindo nas mãos de outros hackers que assumem o projeto e querem mudar tudo, o que gera um outro aplicativo ou framework inacabado. Envolver as empresas de software é algo que traz sua própria cota de problemas, já que essas empresas ainda fazem “outras coisas das quais não gostamos”, mas nós precisamos da ajuda das empresas profissionais de software para dar mais embalo ao software livre.
O estilo “hacker solitário” de desenvolvimento é ótimo até certo ponto, mas há muitas outras peças que precisam se encaixar em um todo. Ele destacou as diferenças entre o Qt e o GTK como exemplo. O GTK é um “kit de ferramentas para hackers”, e o Qt é de posse de uma empresa que cuida da documentação, do controle de qualidade e de outras tarefas necessárias para que ele seja um “kit de ferramentas profissional”. A posse corporativa do código por vezes pode gerar abusos, como “a Oracle mexendo com o Java”, mas o software livre precisa “usar” as empresas de um jeito meio “jujitsu”, usando o código delas de maneiras benéficas para o ecossistema.
Ele disse que algumas das maiores histórias de sucesso do software livre vêm de empresas que se envolvem com o código. O MySQL e o PostgreSQL são “dois ótimos bancos de dados em software livre” com empresas por trás do desenvolvimento e do suporte. O CUPS é um ótimo subsistema de impressão, e ao menos em parte isso deve ao fato da Apple ser sua dona e mantê-lo. O Android é outro exemplo de um sucesso do código aberto; e o Google mantém um controle rigoroso sobre a base de código.
Shuttleworth discorda da história sobre como o fork do OpenOffice.org para o LibreOffice ocorreu. Ele disse que a Sun deu um “presente” de 100 milhões de dólares à comunidade quando abriu o código do OpenOffice. Mas uma “facção radical” fez da vida dos desenvolvedores do OpenOffice “um inferno”, recusando-se a contribuir com código sob os termos do contrato da Sun. Isso acabou levando ao fork, que depois levou a Oracle a optar por interromper o desenvolvimento do OpenOffice e demitir 100 funcionários. Segundo ele, o ritmo de desenvolvimento do LibreOffice não está acompanhando o do antigo OpenOffice, e ele se pergunta se não teria sido melhor para o OpenOffice se a outra “facção” não tivesse ganhado.
Há uma “falta de entendimento patológica” entre alguns setores da comunidade quanto ao que as empresas trazem de valioso”. Por um lado, as pessoas ficam com medo e não confiam nas empresas; pelo outro, perguntam “onde posso conseguir um emprego que mexa com software livre?” Segundo ele, são as empresas que geram os empregos. Há muito “papo-furado ideológico” na comunidade, e embora seja uma atitude racional ser cauteloso ao analisar as motivações das empresas, não é racional evitá-las por completo.
O projeto Harmony
O Contrato de colaboração da Canonical é “no mínimo, medíocre”, mas tem “alguns elementos que são bastante generosos”, segundo ele. Ele oferece uma licença ampla para código contribuído, para que o código possa ser lançado sob qualquer licença que o autor escolher. Além disso, ele conta, a Canonical vai lançar pelo menos uma versão do projeto coberta pela licença que governa o projeto. Só que essa garantia não aparece no contrato [PDF].
Shuttleworth diz que esses tipos de contratos de colaboração vão continuar existindo, e que não acreditar nisso “é negar a realidade do mundo no qual vivemos”. O problema é que há vários contratos diferentes que são “amadores em um ou outro aspecto”, então é preciso “destilar a quantidade de combinações e permutações” desses contratos em um conjunto consistente. Essa é a função do projeto Harmony.
O projeto reuniu vários grupos, empresas, organizações e indivíduos com ideias diferentes a respeito dos contratos de colaboração, incluindo alguns que se “opõem fortemente” à atribuição de copyright. O projeto já preparou “rascunhos de contratos” que “reconhecem amplamente” o fato de representarem o conjunto de opções que diversos projetos desejam.
Os contratos vão ajudar a comunidade a abandonar os contratos “ad hoc” em prol de um conjunto padrão, “semelhante ao Creative Commons”, nas palavras de Shuttleworth. A ideia é tornar o processo familiar aos desenvolvedores, para que eles não tenham que desvendar contratos diferentes para cada projeto com o qual desejem contribuir. Ele prevê que a versão 2.0 desses contratos lide com mais jurisdições, e que atenda aos problemas que surgirem.
A visão de Shuttleworth
Durante a nossa conversa, Shuttleworth mostrou-se claramente apaixonado pelo software livre, e ao mesmo tempo decepcionado com o estado dos aplicativos de software livre atuais. Ele tem uma visão do futuro do software livre que é muito diferente da abordagem atual. Você pode até discordar dessa visão, mas ela foi muito bem pensada, e Shuttleworth acredita nela. Você também pode alegar que foram feitos enormes progressos no software livre nas últimas duas ou três décadas, e ele concorda com isso, mas será que nossa abordagem atual vai nos levar “ao próximo estágio”? Ou precisamos de uma abordagem diferente?
Quanto aos contratos de colaboração, parece ser um pouco tarde para defendê-los, coisa que o próprio Shuttleworth reconheceu em sua apresentação no UDS. A oposição a esses contratos, ao menos com relação à exigência de atribuição de direitos autorais, é muito alta, e os opositores provavelmente já fincaram pé. Embora ele lamente pela ideologia em relação aos contratos de colaboração, também há obstáculos processuais que os tornam impopulares.
A maior pergunta, no entanto, é se uma comunidade mais receptiva aos contratos de fato geraria uma maior participação das empresas. Se o objetivo for o de levar o software livre para um grande número de desktops em poucos anos, um objetivo que talvez não seja o de todos, certamente alguma coisateria que ser modificada. Se isso implica em incluir mais empresas que também possam estar correndo atrás de interesses proprietários com o mesmo código não está claro ainda, mas o que está claro é que Shuttleworth vai pelo menos tentar fazer isso acontecer.
Créditos a Jake Edge – lwn.net
Tradução por Roberto Bechtlufft <info at bechtranslations.com.br>
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