Pode parecer óbvio o que iremos tratar aqui, mas em pleno 2019 muitas pessoas continuam com uma visão completamente deturpada do que é ser um hacker. Fazendo aqui um mea-culpa, a própria imprensa tem uma enorme contribuição para esse desvio de imagem, mas calma que iremos chegar lá. Antes é preciso discutir o retrato que costumeiramente é associado ao hacker. O “criminoso virtual”; àquele que quebra as leis; responsável por danos tanto no universo online quanto fora dele. Esses são alguns rótulos atribuídos ao hacker.
Porém, na própria definição do termo inglês hacker, a associação com crimes, está completamente errada. Como frisa muito bem o primeiro volume da Bíblia Hacker (Clube dos Autores/2017), a palavra hacker tem como definição aqueles que fazem hacks. E o que é um hack? Palavra associada a atalho, truque, macete.
Nos anos 40, com os hackers de origem, os diversos estudantes brilhantes do MIT, integrantes do grupo TMRC (Tech Model Railroad Club) o termo hack já era utilizado. Não só ele, mas como muitos outros termos que se tornariam popular ao longo dos anos no mundo digital surgiram naquela época.
No caso de hack, a palavra era usada pelos integrantes do TMRC quando algum projeto inovador e interessante estava associado ao prazer, já que compreender com profundidade algum assunto, entre eles o funcionamento dos mais variados equipamentos e sistemas, sempre foi um prazer para os verdadeiros hackers.
“Aquele que conhece os atalhos”. Essa pode ser uma definição perfeita para hacker, já que seu conhecimento sólido em programação, os meandros dos sistemas operacionais e arquiteturas, torna o hacker um verdadeiro conhecedor de atalhos, tornando-o apto a descobrir vulnerabilidades em sites e aplicações, por exemplo. A partir da descoberta de uma brecha ou problema é que alguém, ou um grupo de pessoas (já que ser hacker também é ser organizado e trabalhar em grupo) poderá ser encarado como um hacker ou como um criminoso virtual, que no modo mais correto da aplicação dos termos deve ser enquadrado de outra maneira: cracker.
[Lembrando que, embora seja mais associado ao universo de computadores, sistemas operacionais e operações da web, há hackers em todos os segmentos]
Está lembrado que no início comentei que a imprensa tem uma enorme contribuição para essa associação do hacker com o crime digital? Então, mesmo tendo o termo cracker à disposição, matérias sobre algum acontecimento criminoso na esfera do universo digital utilizam com frequência o termo hacker. A palavra cracker realmente não caiu no gosto popular. Até mesmo pessoas que não são muito inteiradas sobre esse universo conhecem os termos hacker a hackear, isso faz com que boa parte dos conteúdos sobre segurança da informação na mídia continuem utilizando o termo hacker tanto para enaltecer um trabalho honesto como para alertar sobre um ato desonesto.
Mesmo com essa confusão, hackers honestos, os que seguem preceitos éticos, continuam sendo muito bem representados e citados. Vide o caso do ano passado, quando a imprensa divulgou que processadores da Intel eram afetados pelas falhas Meltdown e Spectre. As falhas foram descobertas pelo Google Project Zero, grupo que reúne mentes brilhantes que descobrem e reportam problemas no segmento de segurança da informação. Essas mentes brilhantes que o Google mantém unidas nesse trabalho são hackers. Pessoas com conhecimento avançadíssimo e que seguem diretrizes. Entre os protocolos, avisar com 90 dias de antecedência a empresa responsável pelo produto com a brecha antes que a informação seja divulgada publicamente. Essa cautela faz com seja minimizada a chance de exploração de alguma vulnerabilidade por um “hacker do mal”, o cracker.
Sim, o cracker não deixa de ser um hacker, inclusive a linha que os separa pode ser bem tênue. Muitos que já foram crackers no passado passaram para o lado do hacker ético e vice-versa.Verdadeiros crackers também possuem uma bagagem respeitável em termos de conhecimento, mas como carregam a bandeira da subversão de regras, de causas danos e lucrar de forma ilícita, automaticamente são transferidos para o panteão dos cibercriminosos, responsáveis por estragos ao invés de avanços para produtos, serviços e sociedade.
Jonh Erickson, no livro Hacking: The Art of Exploration (No Starch Press/2008), explica essa diferença com uma analogia brilhante. ” A Física Nuclear e a Bioquímica podem ser usadas para matar, mas elas também nos forneceram avanços científicos significativos na medicina moderna. Não existe nada de bom ou ruim no conhecimento em si; a moralidade reside na aplicação do conhecimento”.
Essa regra vale para muitas outras discussões, como no caso do vício em smartphones e redes sociais. Tentam repassar para as plataformas e dispositivos problemas, carências e dependências que são características da evolução humana, vícios que foram apenas transferidos. O problema é muito mais amplo do que o Facebook, Instagram ou WhatsApp.
A necessidade de entender e melhorar máquinas e sistemas é uma filosofia que os hackers carregam, desde a sua origem, com os alunos inteligentes e curiosos do MIT. Complementando a lista de definições do que pode ser um hacker, compartilho abaixo um poema publicado no jornal do clube TMRC na década de 40, relembrado no livro “Os Heróis da Revolução” (Editora Évora/2012).
“Lançador de interruptores para o mundo,
Testador de fusíveis, criador de estradas,
jogador nas estradas de ferro, piloto dos sistemas avançados;
Esquálido, descabelado, desleixado,
Máquina das válvulas e parafusos:
Eles me dizem que você é perversa e eu acredito; eu vi suas luzes de plástico colorido atraindo os sistemas de refrigeração…
Sob a torre, poeira de todos os lugares, faço hack em sistemas bifurcados,
Faço hack como um calouro ignorante, que esteve sempre ocupado e acabou não se formando,
Faço hack nas placas de controle sob as quais estão os interruptores e sob seu controle avançamos com o sistema,
Sou um hacker!
Esquálido, descabelado e desleixado, faço hack na minha juventude; sem cabos, fritando diodos, tenho orgulho de ser o lançador de interruptores, o testador de fusíveis, o criador de estradas, jogador das estradas de ferro e piloto dos sistemas avançados”.
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