Segundo a International Game Developers Association (IGDA), na indústria dos jogos, “crunch” é o nome dado ao período em que desenvolvedores enfrentam longas jornadas de trabalho, geralmente com horas extras não remuneradas, em uma tentativa de cumprir prazos apertados ou alcançar padrões exigentes de qualidade.
Durante o crunch time, algumas empresas podem estabelecer jornadas que ultrapassam 100 horas semanais. Essa rotina pode durar semanas ou até meses. É uma prática antiga, enraizada em um modelo de produção que prioriza o lançamento pontual, muitas vezes em detrimento da saúde mental e física dos funcionários.
Tomou forma nos anos 80
A cultura do crunch começou a se formar nos anos 1980 e 1990, quando jogos em mídia física precisavam estar prontos com meses de antecedência para atender à demanda de datas comerciais como o Natal. Como lembra a produtora Virginia McArthur, os estúdios tinham até agosto para finalizar seus títulos e mandá-los para prensagem. Isso criava uma mentalidade de urgência extrema e pouca margem para erros.
Relatos de exaustão, colapsos e internações
Casos de crunch severo se espalham por estúdios consagrados. Jonathan Cooper, ex-animador da Naughty Dog, relatou em 2020 que a empresa enfrentou dificuldades para contratar profissionais para trabalhar em The Last of Us Part II em Los Angeles, devido à má reputação do estúdio nesse aspecto.
Cooper também ressaltou um ponto importante em relação ao crunch. Nem todos os envolvidos em determinado projeto passam por isso. Ele, como um animador de histórias, revelou que tinha uma média de 46 horas semanais, e que nunca fez acima de 55, mas afirmou que colegas de outras áreas chegaram ao limite da exaustão.“Um bom amigo meu foi hospitalizado pela carga de trabalho intensa”, relembrou.
Já Uncharted 4, do mesmo estúdio, é lembrado como um dos projetos com os relatos mais extremos de crunch. A designer Emilia Schatz revelou, no livro Sangue, Suor e Pixels, de Jason Schreier, que o ambiente na fase final do desenvolvimento era de puro desespero. “Você olhava para os colegas no corredor e via aquele olhar: ‘Não sei como vamos terminar isso’. Simplesmente parecia impossível.”
Rockstar: polimento técnico com alto custo humano
Em comentário sobre o adiamento de GTA 6, que passou para o dia 26 de maio de 2026, Schreier publicou em sua conta no Bluesky que ninguém com quem ele conversou na Rockstar acreditava que o jogo sairia na na janela de tempo programada inicialmente, entre setembro e dezembro, de 2025. “Ainda há muito trabalho a ser feito, e a empresa está evitando um crunch brutal”, destacou.
Todas as vezes que a Rockstar Games adiou grandes lançamentos
A Rockstar Games aparece frequentemente nos debates sobre crunch. Um dos casos mais famosos deu origem até mesmo a uma carta aberta, fruto da união de esposas de funcionários da Rockstar San Diego para denunciar as condições de trabalho do estúdio.
Em janeiro de 2010, sob o pseudônimo “Rockstar Spouse”, elas publicaram uma carta aberta relatando que seus maridos estavam sendo expostos a jornadas de trabalho de até 12 horas diárias, seis dias por semana, desde março de 2009. Na publicação, elas alertaram que eles estavam enfrentando sérios problemas de saúde devido a essa rotina, incluindo sintomas de depressão e tendências suicidas.
A carta também apontava a retirada de benefícios, redução de férias e a falta de compensação por tantas horas extras, além de uma cultura organizacional que não valorizava a saúde e o bem-estar dos empregados. Alguns dias após a publicação da carta, a Rockstar respondeu, lamentando que alguns ex-membros não tenham achado seu tempo na empresa agradável ou criativamente graficamente, e que eles sempre se importam com pessoas apaixonadas pelo projeto.
A “paixão”
Esse ponto da paixão pelo projeto é um termo recorrente entre desenvolvedores que falam sobre o crunch.
Em teoria o crunch não é obrigatório, mas na prática é outra coisa. Já que aqueles que não aceitam representam para a companhia uma ausência de paixão, além é claro da atmosfera de pressão social interna, com a valorização para aqueles que aceitam se submeter ao processo.
Em uma entrevista ao GAMINGbible, Mike Bithell, desenvolvedor britânico, criador do Thomas Was Alone, afirmou que a ideia do crunch ser opcional é um disparate. Na prática é obrigatório. Ele afirmou que frequentemente, líderes de estúdio dizem: “Se você é apaixonado e se importa com a equipe, você ficará. Se quiser aquela promoção, você fará horas extras.
A Rockstar é conhecida por seus inúmeros polimentos e alto número de tentativas e reedições em cima de um material. Por exemplo, um trailer ou comercial de TV de um game como Red Dead Redemption 2 chega ser refeito cerca de 70 vezes, destacou Dan Houser, cofundador da Rockstar Games, em entrevista ao Kotaku em 2018.
Nesse papo, o famigerado ponto sobre a paixão também apareceu. Houser, que destacou que as cargas de trabalho chegavam a 100 horas semanais, faziam parte do processo para um resultado eficaz.
“Obviamente, não esperamos que ninguém trabalhe dessa maneira. Em toda empresa, temos alguns funcionários seniores que trabalham muito duro simplesmente porque são apaixonados por um projeto ou por seu trabalho específico, e acreditamos que essa paixão transparece nos jogos que lançamos. Mas esse esforço adicional é uma escolha, e não pedimos e nem esperamos que ninguém trabalhe dessa forma“, acrescentou Houser.
Crunch crônico: quando a exceção vira rotina
Por definição, o crunch é associado a um processo mais pontual, principalmente para a finalização do projeto, mas com uma realidade de mercado em títulos como Fortnite, que se mantém vivo, o crunch é sustentado como rotina. Diante do crescimento meteórico do game, desenvolvedores chegaram a trabalhar pelo menos 12 horas por dia, sete dias por semana, durante meses a fio.
Os relatos são de pressão imensa para cumprir os prazos semanais, regado a um temor de perderem o emprego caso tirassem folga ou se recusassem a trabalhar horas extras.
A pressão como regra
Em fóruns, como o Reddit, é possível se deparar com inúmeros relatos de pessoas que afirmam ser da indústria e que passaram por processo de crunch. É importante considerar que é difícil considerar esses relatos como verdade absoluta, já que é uma fonte que pode ter pessoas inventando ou pesando a mão nos relatos, mas encontrei algumas mensagens que estão alinhadas com o que grandes nomes já relataram publicamente.
Nesse post, um usuário conta que trabalhou para uma empresa de médio porte em Ontário, Canadá. Ele diz que o crunch pirou progressivamente à medida que o projeto se aproximava do fim.
“Cerca de 2 meses depois do fim do contrato, trabalhamos das 9h às 1h da manhã, 7 dias por semana. Eles também forneciam almoço, então comíamos em nossas mesas e trabalhávamos durante o almoço.
Assim que o jogo foi lançado, eles demitiram toda a equipe. Eu estava lá com uma autorização de trabalho, então corria o risco de deixar o país e terminar com minha namorada na época”
Estava tão estressado, mesmo exausto, não conseguia dormir, mas também não conseguia pensar direito quando acordava. Peguei um resfriado, depois uma gripe, depois uma sinusite e depois uma infecção de ouvido. Não sou uma pessoa doente e nunca tive infecções antes. Sinceramente, acho que estava morrendo, e talvez tivesse morrido se não fosse por um longo tratamento com antibióticos.
O desenvolvedor também conta que conseguiu ficar no Canadá. “Levou cerca de 9 meses para encontrar outro emprego e tive que me mudar para Quebec,. Mas até agora este trabalho não exige quase nenhum crunch”.
Outro relato cita diretamente um game, The Puzze Maker. Na mensagem, o dev diz que quando estava se aproximando para o lançamento do jogo (setembro de 2024), ele começava a trabalhar por volta das 4 da manhã e ficava até as 20h, processo que foi mantido entre 2 e 3 semanas.
“Definitivamente, isso afetou a minha vida pessoal; minha namorada não estava nada feliz com a quantidade de tempo que eu estava gastando com isso. Eu trabalho em casa, então isso definitivamente amenizou um pouco o problema, já que não estava fisicamente ausente, mas definitivamente não estava mentalmente presente. Não estava virando a noite, mas não é tão diferente funcionalmente começar tão cedo.
Nem os estúdios indies escapam
Ao contrário do que se imagina, o crunch não é exclusividade dos grandes nomes. Equipes independentes, mesmo com mais liberdade nos prazos, enfrentam suas próprias pressões. Times enxutos, metas de financiamento e a busca por visibilidade nas lojas digitais criam ambientes onde poucos profissionais assumem muitas funções.
Segundo pesquisa de 2021 da IGDA, 58% dos desenvolvedores em tempo integral e 63% dos freelancers relataram ter passado por crunch duas vezes ou mais nos últimos dois anos, mostrando que o problema é estrutural, e não limitado por escala.
Denúncias revelam abusos ainda mais graves
Em um vídeo publicado pelo canal People Make Games, o jornalista Chris Bratt investigou o estúdio indonésio Brandoville, terceirizado por gigantes como Ubisoft e Microsoft. Ex-funcionários relataram práticas abusivas: punições por escrito, inspeções de roupa, orações obrigatórias, humilhação pública e até privação de sono. Um deles mencionou que foi obrigado a comparecer à empresa durante uma crise pessoal e até em plena internação hospitalar de um colega.
Tentativas de mudança ainda são tímidas
Sindicatos e organizações como a Game Workers Unite e a Communications Workers of America vêm tentando mudar esse cenário. Defendem escalas mais flexíveis e o fim do crunch compulsório e não remunerado. Algumas empresas começaram a implementar iniciativas como dias de folga programados e prazos mais transparentes. Mas, segundo relatos de bastidores, muitas dessas medidas são ignoradas quando o projeto entra em fase crítica.