A onda dos HDs multimídia e o descaso dos fabricantes com o software livre

A onda dos HDs multimídia e o descaso dos fabricantes com o software livre

Desde que surgiu o mp3, os formatos digitais vêm tomando o espaço das mídias físicas, e isso parece não ter volta. Com o surgimento do DIVX e a popularização das conexões de banda larga, os formatos digitais de vídeo começaram a tomar espaço do DVD. Até mesmo no Brasil já existem serviços de locação digital via internet, como o oferecido pela livraria Saraiva.

Nessa direção surgiram os HDs multimídia (ou Jukebox multimídia, se preferir), que são HDs externos com um “processador de mídia digital” embutido, que podem ser conectados diretamente a sua TV, transformando-a em uma biblioteca de vídeos, músicas e fotos, a disposição a partir de seu controle remoto.

Em qualquer loja de eletrônicos europeia já existe uma prateleira reservada para esta classe de dispositivo. As opções vão de modelos portáteis básicos, com HDs de laptop, até “gigantes” de 2 TB que possuem 3 antenas wireless (padrão “n”) e um sintonizador de TV digital, incluindo o recurso de consultar a programação da TV e gravar as transmissões diretamente em algum dos formatos suportados.

Claro que o maior número de recursos tem um preço, que pode chegar a casa dos 400 Euros, mas há diversos modelos intermediários que oferecem um custo/benefício razoável. Recentemente adquiri o dispositivo “Yes We Can HD”, da francesa “wedigital”, e este artigo é uma descrição cronológica da minha experiência com o equipamento.

Yes We Can HD, primeiras impressões

Yes We Can HD, baseado no chip Realtek 1073

O dispositivo é vendido com 3 opções de HD, que podem ser de 500 GB, 1 TB ou 1.5 TB, possui conexões de rede 10/100 LAN (RJ45), HDMI 1.3, Vídeo componente e duas portas USB. Na tabela a seguir podemos ver os formatos e codecs suportados:

Formatos de vídeo
mkv, ts, m2ts, mts, tp, trp, wmv, ifo, iso, vob, dat, avi, mpg, mp4, mov, rm, rmvb, divx, xvid, flv
Codecs de vídeo
H.264, MKV, WMV9, MPEG 1/2/4, HD Dvix, Xvid, FLV, RM/RMVB
Resolução : H.264, MKV, WMV9, TS & HD Divx (max 1920x1080p
30p) RM/RMVB (max 720p)
Audio
MP3, WMA, WAV, OGG, AAC, LPCM, FLAC
Fotos
JPEG, JPG, BMP, PNG, GIF
Legendas
sub, smi, ssa, srt, idx+sub

Dentre os diversos HDs disponíveis nas lojas que consultei, o “Yes We Can HD” é o mais completo na questão de formatos e codecs. Mesmo HDs top de linha, que custam o dobro deste, raramente oferecem suporte aos formatos da Real (RM, RMVB). Outros recursos incluem o Samba Client, que permite acessar/copiar arquivos do seu computador usando o próprio controle remoto, e a possibilidade de utilizar alguns serviços de internet, como Youtube e Flick:

Menu inicial do “Yes We Can HD”, com a opção “DVD Externo” pode-se acessar uma unidade externa de DVD ou Blue-ray

Conectei o HD a minha TV usando o cabo HDMI (como é bom um único cabo pra áudio e vídeo…), e ao ligá-lo automaticamente foi selecionada a resolução de 1920x1080p. Copiei para o HD uma ISO de um DVD-video, arquivos AVI, RMVB e MKV (h.264). A imagem ISO abriu perfeitamente (incluindo o menu do DVD), assim como os outros 3 arquivos. Porém, tocando qualquer um dos tipos de arquivo por alguns minutos aparecia uma mensagem “IO Error, STOP”, e o HD retornava a navegação de arquivos.

Curiosamente, notei que este problema não aparecia quando eu tocava os mesmos arquivos a partir da porta USB, utilizando um HD externo ou pendrive. Imaginei que o problema poderia estar no “software” do dispositivo que controla o HD e foi então que me ocorreu que, se o HD possui um cliente samba, talvez fosse possível que todo o sistema fosse opensource e neste caso alguma comunidade em algum lugar pudesse estar trabalhando no desenvolvimento do software.

O que há dentro do “Yes We Can HD”?

Meu primeiro passo foi escrever para a wedigital (www.wedigital.fr), de onde não obtive resposta. Pesquisando no Google encontrei reclamações a respeito do mesmo “IO Error”, em produtos que não eram da wedigital, e ainda dicas de instalação de firmware “universais”, que funcionavam em diversos modelos de HDs.

A.C. Ryan, Hisense, Asus, Seagate, Icybox, Med38er, Ellion, Hyundai, Radiogears, O2Media, 4Geek, Memup, Szider, Icontec, Mvix, etc. Todas estas empresas comercializam modelos idênticos ao “Yes We Can HD”, alguns que inclusive conservam a mesma aparência externa (disposição das conexões). Foi no site da Mvixque confirmei que não apenas o Samba, mas todo o software do dispositivo é opensource, incluindo o Linux Kernel, busybox e diversas bibliotecas.

Vale registrar que a Mvix é uma das poucas empresas que disponibilizam o código fonte utilizado. Já a Iconbit vai mais longe, tendo criado um fórum administrado por funcionários da empresa, onde assuntos técnicos são realmente discutidos. Quero dizer que lá eles discutem o software do dispositivo mesmo, como editar arquivos de configuração, instalar novos pacotes e etc. O único problema é que o fórum é russo, e só consegui ler alguma coisa por lá utilizando o Google para traduzir a página.

Entre as informações que colhi no fórum russo, a melhor foi que é possível se conectar ao sistema do aparelho via Telnet, o que abre as portas para muita coisa. A partir de meu Ubuntu bastou um “telnet ipdoaparelho” e “voila”, estava dentro da distribuição Linux mais obscura que já vi. Com alguns comandos básicos foi possível verificar algumas coisas sobre o sistema: O aparelho possui 128 MB de RAM, um processador ARM de 200 MHz, memória nand de 128 MB para abrigaro firmware, kernel “2.6.12-Venus”, busybox 1.1.3, além de outras coisas menos importantes.

O hardware do aparelho é baseado em um chip fabricado pela Realtek, o RTD1073, que é descrito pela fabricante como um “HD MPEG1/2/4, H.264, VC1, RM/RMVB Decoder with Ethernet and HDMI”, um SoC que inclui um processador ARM, memória e processador de sinais dentro do mesmo chip. A maior parte dos formatos são decodificados diretamente pelo processador de sinais, o que faz com que este chip seja o único que suporta RMVB, mesmo que chips como o RTD1282 (o cérebro de alguns dos HDs multimídia top de linha) possuam processador de 400 MHz e 256 MB de RAM.

Entre os módulos carregados no kernel do aparelho há o ufsd, da Paragon. É com ele que o sistema consegue montar o disco rígido que, por padrão, vem em NTFS. Isso também me incomodou, uma vez que sou usuário de Linux, comprei um dispositivo baseado em Linux, mas a empresa me obriga a utilizar um sistema de arquivos NTFS. Formatei a partição para “ext3” e ela simplesmente não era montada. Manualmente consegui montá-la e acessá-la, mas o problema é que o SO do aparelho executa algum script para montar as partições, e eu simplesmente não consegui encontrá-lo. Para ajudar, notei que o sistema de diretórios estava completamente fora dos padrões (ponto de montagem /tmp/usbmounts/sda1, por exemplo), o que dificulta aprender como o sistema funciona.

Atualização de firmware, novos recursos e conexão wireless

Menu de configuração do “Yes We Can HD” com novo firmware. A opção “BT/Samba Info” habilita o cliente torrent e o menu de configuração via HTTP

Decidi então atualizar o firmware do aparelho. Há no momento 3 firmwares oficiais disponíveis, e o meu estava com a versão mais velha dos três. No menu do dispositivo há uma ferramenta de atualização, então pode-se atualizar o firmware facilmente após gravá-lo em um pendrive. A atualização mudou o visual da interface completamente, e novos recursos apareceram disponíveis nos menus.

Um destes novos recursos é o btpd, “BitTorrent Protocol Daemon”, que se ativado mantém esse processo rodando no HD. Via http (até mesmo via internet) você acessa um menu de configuração do torrent, onde pode-se configurar o btpd e adicionar/remover torrents. Apesar do recurso ser muito interessante, ele se torna perigoso ao ser usado em um disco NTFS montado através do ufsd, que o faz de maneira muito mais deficiente que o ntfs3g. Não cheguei a utilizar o serviço, mas em vários fóruns encontrei relatos de usuários que perderam parte ou todos os dados do HD, além do clássico problema da fragmentação. A solução sugerida nos fóruns é formatar a unidade em ext3. Fiz isso com o Gparted e para minha alegria, usando o novo firmware partições ext3 são montadas automaticamente.

Menu para copiar arquivos entre os vários dispositivos

Depois de bisbilhotar nos sites de vários desses dispositivos baseados no RTD1073, notei que as atualizações para o firmware surgem para todos aparelhos mais ou menos ao mesmo tempo. Quero dizer que, tenho a impressão de que nenhuma das empresas que comercializam o dispositivo trabalham no desenvolvimento do mesmo. O que acontece é que todas pegam um mesmo firmware e adicionam pequenas alterações, que muitas vezes não passam de exibir o logo da empresa durante a inicialização. A ACRyan inclui também em seu firmware uma ferramenta de verificação que impede sua utilização em aparelhos de outras marcas.

No manual do aparelho e no site do fabricante há informações sobre a possibilidade de conexão wireless 802.11g através de um adaptador usb. A “wedigital” vende um dispositivo compatível por 30 Euros, enquanto na Amazon encontramos adaptadores USB da Tp-link por cerca de 12 Euros. Mais uma vez escrevi a “wedigital” pedindo informações e eles não me responderam, porém, nos fóruns dos dispositivos similares encontrei listas dos adaptadores compatíveis, incluindo até mesmo alguns adaptadores 802.11n, que segundo a “wedigital” não deveriam funcionar.

Conclusões

A Apple recentemente relançou o Apple TV e como sempre, muita gente acredita que isso é novidade. O único recurso realmente original da Apple é colocar o iTunes na sua TV, pois dispositivos baseados no RTD1073 oferecem muito mais recursos, e ainda são abertos a otimizações e atualizações. Porém, enquanto a Apple deve ter gasto algum tempo e dinheiro pra garantir que o software do Apple TV ficasse devidamente “polido”, o software do RTD1073 carece desse esforço por parte das empresas, e ainda não possui uma comunidade de usuários suficientemente grande e desenvolvida.

No Brasil algumas lojas já comercializam HDs multimídia, como a americanas que vende uma unidade de 500 GB da Iomega por absurdos 1399 Reais. NoAmazon.fr (vendido somente para a Europa) uma unidade da mesma marca, de 1 Tb e com ethernet custa 185 Euros.

A medida que os HDs multimídia se popularizarem, acredito eu que as comunidades e fóruns ganharam força e aos poucos os problemas com o software vão desaparecer. Eu particularmente, espero poder ver logo uma seção “HDs multimídia” no fórum do guia do hardware!

Por Marcos Paulo Belançon <marcosbelancon [at] gmail em com>

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