Hardware de código aberto para telefonia

Open source hardware for telephony
Autor original: Robert R Boerner Jr
Publicado originalmente no:
lwn.net
Tradução: Roberto Bechtlufft

Aplicar os princípios do código aberto ao hardware, mais especificamente ao hardware de telefonia, pode resultar em serviços telefônicos mais baratos, que poderiam fazer um sucesso estrondoso em países em desenvolvimento. Vários projetos estão trabalhando em dispositivos e programas capazes de reduzir drasticamente os custos do fornecimento de serviços telefônicos, especialmente em áreas rurais ou que não possuam infraestrutura para suportar esses serviços. Esses projetos têm potencial para levar a telefonia a áreas que ainda não possuem serviço telefônico.

Os preceitos do hardware de código aberto são muito semelhantes aos do software de código aberto. As ideias que compõem um objeto, seja ele um diagrama de placa de circuito ou arquivos CAD para a montagem de um relógio, estão disponíveis para análise, cópias e modificações. Por esse motivo, muitos projetos de hardware de código aberto para telefonia adotaram as mesmas licenças usadas tradicionalmente por projetos de software de código aberto, como as licenças GPL e MIT. Alguns até adotaram licenças específicas para hardware aberto, como a TAPR Open Hardware License.

Uma pessoa, em especial, criou um projeto de hardware de código aberto que pode mudar a cara da telefonia. David Rowe, um engenheiro de Adelaide, no sul da Austrália, quer tornar as ligações telefônicas um direito, e não um privilégio, de pessoas em todo o mundo. E ele projetou o hardware (que obviamente roda Linux) que vai dar conta disso.

Rowe iniciou o Free Telephony Project, ou projeto de telefonia livre, em 2005. Como acontece com muitos desenvolvedores de software de código aberto, Rowe não conseguiu conter a vontade de desenvolver o PBX IP04, um sistema de telefonia de baixo custo capaz de lidar com chamadas telefônicas analógicas e pela internet usando VoIP.

O IP04 é um dispositivo embarcado movido pelo processador Blackfin da Analog Devices, rodando Linux como sistema operacional e com o software Asterisk servindo como PBX. O IP04 foi desenvolvido para diminuir os custos com a implantação de sistemas telefônicos a tal ponto que qualquer um poderia implantar o sistema nas nações em desenvolvimento. O conceito do dispositivo não é novo – na verdade, Rowe havia aberto uma empresa (que já vendeu) que oferecia hardware para telefonia no Linux. O que torna o IP04 diferente é o custo relativamente baixo (começando por volta de 300 dólares), os baixos requisitos energéticos (a unidade pode ser alimentada por energia solar e/ou por baterias, caso necessário) e o fato de que todo o design do hardware e do software é de código aberto.

Rowe vê possíveis implantações do IP04 como sementes de empreendedorismo em áreas em desenvolvimento. Um empresário local poderia instalar um dispositivo e oferecer serviços telefônicos para pessoas em sua área, agindo como uma pequena empresa telefônica. Rowe acredita que com a ajuda adequada na implantação inicial, o IP04 representa uma oportunidade para que se encontre o modelo certo de franchise, que permitiria o crescimento viral e autossustentado da telefonia em comunidades em desenvolvimento. Começar um negócio é uma forma muito mais poderosa de se oferecer um serviço do que depender de doações e do apoio de países de primeiro mundo.

Rowe postou seus progressos em um blog enquanto projetava o IP04, e seu trabalho chamou a atenção da Atcom, uma fabricante chinesa de equipamentos de telefonia. A Atcom entrou em contato para agradecer pelo design aberto que ele havia publicado, e ofereceu ajuda caso algum dia ele precisasse fabricar algo. Quando o IP04 chegou ao estágio de protótipo, ele cobrou o favor. Três semanas depois, a DHL entregou na porta da minha casa dois protótipos montados. O hardware finalizado, destinado à produção, começou a ser fabricado em julho de 2007. Foram apenas 18 meses para ir da ideia ao produto finalizado.

O apoio da Atcom é um exemplo de como a natureza aberta do projeto contribuiu para o progresso do IP04. Rowe faz questão de agradecer a todos os que o ajudaram em sua trajetória: Estou sobre os ombros de gigantes. Obrigado a todos os que contribuíram, e de cujo trabalho eu tirei proveito. Não necessariamente nesta ordem: à Atcom, à equipe do Blackfin da Analog Devices, à comunidade do Asterisk e às equipes do Astfin e do BlackfinOne.

O IP04 deu origem a outros dispositivos, como o IP01, o IP02 e o IP08, que têm como maior diferencial a quantidade de conexões possíveis a telefones analógicos ou linhas analógicas, caso o VoIP não esteja disponível. A Atcom produz unidades para venda, e Rowe também vende os dispositivos em seu site (além de placas de circuitos “virgens” para os aventureiros que quiserem montar suas unidades por conta própria). O IP04 já foi submetido a uma série de testes de certificação, conquistando a certificação FCC nos Estados Unidos e a A-tick na Austrália. Há um fórum ativo onde os usuários podem obter suporte, e onde muitos desses usuários vêm ajudando a expandir o dispositivo através de complementos de software ou caçando bugs. Uma empresa começou um negócio bem-sucedido de venda e suporte com uma ampla linha de dispositivos, adicionando um firmware personalizado e abrindo seu próprio fórum comunitário.

As possibilidades de comunicação aberta e de baixo custo para o mundo são muitas. A série IP0x de dispositivos parece ser apenas o começo. E Steven Song percebeu isso. Como membro do setor de telecomunicações da Fundação Shuttleworth, Song esteve envolvido na criação do projeto Village Telco, que compartilhava muitas das ideias presentes na visão de Rowe em seu projeto Free Telephony. Song convidou Rowe e vários outros indivíduos de mentalidade semelhante para uma workshop, onde seriam discutidas ideias para expandir o conceito de um kit de ferramentas para empresas de telefonia de baixo custo.

Nesse primeiro encontro ocorrido em junho de 2008, a Primeira Workshop da Village Telco, a ideia da próxima geração da telefonia de hardware de código aberto ganhou vida na forma do “Mesh Potato”. Trata-se basicamente de um roteador Wi-Fi com uma porta FXS (para conexão de um telefone analógico comum) em uma rede em malha. O conceito original foi criado por Kristen Peterson, colega de Rowe, durante uma conferência em 2007.

O conceito do dispositivo é simples. Uma pequena unidade do tamanho de um roteador Wi-Fi comum (usando o OpenWRT) custando aproximadamente 50 dólares e com uma conexão para um telefone analógico barato (pela porta FXS). Esse dispositivo operaria em uma rede em malha com outros dispositivos semelhantes, praticamente da mesma maneira que o laptop XO da OLPC, criando em essência um rede de telefonia ad-hoc que dispensasse uma infraestrutura adicional. Os dispositivos podem operar de forma independente, ou estar conectados a um provedor local. Segundo Rowe, Muitas pessoas que vivem em países em desenvolvimento gastam boa parte de sua renda com telefones celulares (até 40%). Elas estão sendo exploradas pelos modelos de negócios que os telefones celulares parecem atrair. Nós pretendemos formar uma pequena competição, com um serviço que vai funcionar em um espectro não licenciado.

O uso em nações em desenvolvimento não é a única aplicação em potencial para o dispositivo Mesh Potato. Song prevê o uso dele em situações de crise. Se após um grande desastre, a telefonia celular e a telefonia fixa forem interrompidas, poderia haver uma implantação muito rápida de dispositivos Mesh Potato. Embora ainda seja apenas um conceito no momento, Song traçou um cenário interessante em um post no blog da Village Telco.

O Mesh Potato já atingiu o status de protótipo, e os primeiros dispositivos já estão sendo preparados para serem distribuídos aos interessados em testá-los ao redor do mundo. Ao ser perguntado sobre o que marcaria o sucesso do projeto Village Telco, Rowe responde: Seis meses de operações em uma cidadezinha gerando lucro para o empreendedor. Fazer dinheiro é a melhor maneira de provar que a tecnologia funciona.

As inovações da telefonia de hardware de código aberto não se limitam a Rowe e ao projeto Village Telco. O projeto Astfin, uma distribuição com o Asterisk e o uClinux, não apenas oferece suporte à série de dispositivos IP0x como também produz hardware capaz de oferecer opções de conexão diferentes, como os padrões BPI e PRI de ISDN.

É claro que a comunidade está levando as coisas para ainda mais longe. O projeto OpenBTS é um aplicativo Unix de código aberto que usa o USRP para proporcionar aos telefones GSM comuns uma interface GSM pelo ar (a “Um“) e que utiliza o software de PBX Asterisk para conectar as chamadas. A combinação da onipresente interface GSM pelo ar à transmissão via VoIP pode formar a base de um novo tipo de rede para celulares, capaz de ser implantada e operada a custos bem menores do que as tecnologias atuais em países em desenvolvimento. Essencialmente, eles somaram um dispositivo de hardware de código aberto (o USRP) ao software de código aberto, e possibilitaram a criação de uma rede wireless compatível com diversos telefones celulares de todo o mundo. O sistema foi posto em testes recentemente no evento Burning Man Festival, e há posts detalhados contando o que deu certo e o que não deu.

Se os projetos Open Telephony, Village Telco e OpenBTS serão bem-sucedidos é um mistério, mas nos três casos, a decisão de abrir não apenas o software como também o hardware já rendeu lucros ao acelerar o tempo de chegada ao mercado e o desenvolvimento da comunidade. Nenhum desses projetos teria chances de ser bem-sucedido se outros projetos de software e hardware de código aberto não existissem. Assim como o mundo hoje se beneficia desse tipo de software, o futuro do hardware de código aberto parece abrigar muitas possibilidades.

Créditos a Robert R Boerner Jr lwn.net
Tradução por Roberto Bechtlufft <info at bechtranslations.com.br>

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