Mas deixando de lado os recursos que o HTML 5 vai implementar, todo o propósito do HTML como linguagem que une formatação e conteúdo em um só esquema foi subvertido pelo modelo MVC, que usa o HTML só no finalzinho do processo de formatação. Ou seja, quando você visita um site no estilo MVC, geralmente está vendo HTML, mas o HTML em si está sendo criado na hora por um programa controlador que também está determinando quais dados devem ser exibidos, em vez de permitir que o formato e os dados sejam determinados por um humano, ou seja, um desenvolvedor web. Quando você visita o eBay, procura por um item qualquer e muda da ordenação por tempo restante para a ordenação por preço, não há um sujeito que pegue os resultados e reescreva o HTML rapidinho para você, mas sim um controlador que toma conta de tudo. O verdadeiro foco do desenvolvimento web hoje em dia está na criação de bons controladores, em como torná-los mais eficientes e fáceis de trabalhar, e até tecnologias como o Flash, que têm estado associado a views, estão cada vez mais assumindo a responsabilidade dos controladores, acessando diretamente bancos de dados.
O resultado é que os verdadeiros perdedores nos últimos 15 anos não foram empresas como o grupo Forrester, que foram (ou ao menos deveriam ter sido) tremendamente beneficiadas pelo desenvolvimento de controladores que permitem o acesso direto aos dados abstraídos, mas sim os amadores que construíram a web com HTML puro e estático. Podemos culpá-los por popular o Geocities, o Tripod e o Angelfire no início dos anos 90 com aquelas monstruosidades do design, mas também foram eles os primeiros a usar a web como uma ferramenta para se expressarem digitalmente, e não como uma ferramenta para a replicação de suas expressões pré-escritas ou pré-pensadas de maneira digital. Ou seja, enquanto escreviam o HTML, eles também escreviam exatamente o conteúdo que queriam formatar, de uma só vez.
Enquanto escrevo este artigo, estou digitando em uma caixa de texto WYSIWYG que renderiza minha escrita de forma limpa em fonte TrueType com a indentação adequada, itálico e afins, para que eu me concentre no conteúdo puro e abstraído, e não na formatação. Depois de publicado, o mundo poderá ler o que eu escrevi, mas o que ele verá será apenas parte da minha expressão pessoal. A outra metade estará no tema deste blog, que determinou o formato para mim através do controlador do sistema de gerenciamento de conteúdo. O resultado é algo elegante, limpo e de aparência profissional, mas não completamente expressivo do que eu queria dizer, porque eu só tive uma intervenção limitada na formatação. Os que escrevem em HTML estático e puro, por outro lado, podem manipular a formatação para se expressar com um controle muito maior. Logo, a cor de fundo desta página, que se mescla ao bege amarelado do mapa, sugere que o site em si é como um velho mapa grego, e os complexos, embora um pouco exagerados botões desta página, com pontinhos dourados correndo em volta de um suntuoso fundo imitando mármore em tom vermelho rubi, sugerem a admiração do autor pela riqueza e pelo esplendor da caligrafia árabe. Eu poderia reproduzir os mesmos efeitos no meu blog feito no WordPress editando o tema e o CSS, mas isso seria um ato separado da escrita do conteúdo, e não uma representação dos meus pensamentos e emoções durante a criação da página da web. É por isso que uma página antiga do Geocities tinha visual tão medonho: a formatação era a expressão impulsiva do autor. A web perdeu esse tipo de unidade entre o conteúdo e o formato em um movimento contínuo de expressão.
A separação entre a criação do conteúdo e a formatação tem ramificações profundas para a internet e a computação de modo geral que vão além da mera questão da facilidade em se criar um site do zero. Toda profissão tem uma escola de adeptos que creem na unidade da estratégia e das táticas, ou na convalescença dos traços grossos com os pequenos detalhes que preenchem as bordas. Arquitetos como Louis Sullivan e Frank Lloyd Wright não se tornaram famosos apenas por planejarem suas construções de forma elegante, mas também por cuidarem do design dos detalhes que preenchiam o espaço que eles haviam visualizado, incluindo as maçanetas e as cadeiras. Os marceneiros de hoje continuam escolhendo a madeira cuidadosamente, com as linhas que melhor expressem sua visão, em vez de aceitarem os compensados homogêneos. Esses artistas são artífices em suas especialidades, e seus trabalhos estonteantes dependem de sua capacidade de criar conteúdo e formato por meio de um ato magicamente unificado de imaginação e trabalho. Estamos falando de unidade em um sentido muito profundo: o ato de um artífice não é meramente uma série de entalhes cuidadosos e momentos de trabalho tranquilo e muito bem pensado; é uma narrativa dramática daqueles momentos individuais do tempo reunidos por um meta-ato, que é a visão-criação unificada. Talvez nem tudo tenha que ser feito dessa forma, mas os artífices têm seu lugar e devem ser respeitados. Sem eles, não teríamos a Casa da Cascata, móveis Chippendale ou outras das maravilhosas contribuições que os artífices ofereceram ao mundo em um milênio de trabalho.
Os artífices da internet, por outro lado, estão em extinção, porque as ferramentas que estão sendo desenvolvidas são cada vez mais hostis à criação de formato e conteúdo em um mesmo movimento. Mesmo entre os designers que querem criar páginas HTML estáticas, a introdução do CSS como solução para sobrepujar as limitações do HTML transformou cada página em um experimento científico, e não em uma obra de arte: o controle de certas variáveis oferece larguras diferentes, outras mudam as margens e por aí vai, bem diferente do esquema de escrever e desenhar a página típico do trabalho com papel e caneta. Além do mais, a impossibilidade de se esculpir sites reflete uma tendência muito mais ampla desde a disseminação da banda larga, alienando o conteúdo criado pelas pessoas não apenas de sua formatação como também de suas ferramentas. Longe vão os dias em que os usuários hospedavam seus sites em seus próprios PCs para que as pessoas pudessem baixar o conteúdo diretamente. Longe vão os dias do ideal democrático em que cada endereço IP representava um único computador na internet – substituído pelo NAT e pelos roteadores domésticos; pareceria ridículo hoje (ao menos com o IPv4) cada dispositivo ter seu próprio IP; e ainda assim, antes da internet, o conteúdo era tão unificado com suas ferramentas que as pessoas literalmente “discavam” para os computadores das outras para acessá-los.
Não estou defendendo a volta do telnet, e geralmente a separação entre criação de conteúdo e formatação faz sentido para aplicativos de escala corporativa, como o Twitter e o Facebook, onde seria insano cada usuário digitar o HTML das atualizações à mão, ou as empresas terem que gerenciar uma bagunça dessas. Daí o paradigma MVC, que proporciona uma base de código de manutenção fácil – mas será que não há outra saída? Se houvesse um jeito mais fácil de criar o código de uma página, não seria preferível permitir ao usuário criar o formato e o conteúdo em uma só tacada? As pessoas teriam muito mais flexibilidade para se expressarem, enquanto os programadores manteriam a organização do modelo MVC que separa de maneira tão eficaz os dados e a implementação.
Parece que ainda não existe uma solução, seja online ou offline. Talvez não haja solução online porque não existe uma solução offline, e se os editores de texto aceitassem formatação mais avançada do que os meros indicadores do fim de cada linha, talvez não precisássemos do HTML, que é essencialmente uma solução imperfeita. E ainda assim, os editores de texto refletem as capacidades do hardware da maioria dos PCs, e há uma profunda divisão nesse sentido entre o teclado, geralmente usado para manipular dados puros e abstratos, e o mouse, que geralmente controla e interage com o formato. Mesmo nos teclados em si, os usuários usam a tecla Num Lock para alternar entre a navegação espacial do teclado numérico e a entrada de números, dividindo ainda mais as duas funções. A última vez em que o hardware unificou a criação de conteúdo e a formatação talvez tenha sido com o Altair 8800, quando interruptores forneciam confirmação visual do opcode entrado e ao mesmo tempo servia para a entrada dos opcodes.
Será que temos alguma solução via hardware à vista? As telas sensíveis ao toque oferecem alguma esperança, mas não encontramos os algoritmos certos para extrair o texto dos manuscritos digitais de maneira confiável, e nem queremos isso, já que digitar é bem mais rápido. Também já fizemos experiências com trackballs, cartões perfurados, reconhecimento facial e de voz e outros métodos, mas nenhuma solução permitiu aos usuários unificar criação de conteúdo e formatação em um mesmo ato e abstrair os dados significativos ao mesmo tempo. Há quem defenda que a solução seria a criação de algoritmos melhores, mas eu acho que a resposta está no desenvolvimento de hardware que seja mais fiel à alma digital, ou mais precisamente à alma computacional, aquele sentimento inexprimível que se tem ao usar um computador e que distingue e unifica todas as experiências com computadores. Isso significa pensar além da escrita ou da realidade virtual, entrando em novos, não inventados e não descobertos reinos da interação com os dados.
As perguntas são “qual é, mais precisamente, a essência da utilização de um computador?”, e “quais ferramentas podem ser melhor adaptadas para ela?”. Se o ato físico de escrever é a modelagem de glifos em uma superfície, o que seria mais natural do que uma caneta e uma página? E ainda assim essa solução não era tão óbvia para os primeiros humanos, que começaram a deixar sinais nas paredes das cavernas com saliva e carvão, e nós nos esquecemos facilmente de quantos milhares de anos foram necessários para que as ferramentas que hoje definem a escrita evoluíssem. Como aqueles homens das cavernas com seus sinais, ainda estamos engatinhando no uso de computadores, e mal sabemos o que fazer com eles. É bastante significativo, por exemplo, o fato de que quase todas as nossas interações com o computador se deem por meio de paradigmas dissonantes e metáforas incongruentes que obviamente levam a incontáveis debates sobre a usabilidade e a ergonomia. Um pintor só pode criar um novo trabalho com as cores que tem na paleta, e só podemos imaginar um mundo digital com as ferramentas e formatos que conhecemos. Por acaso é de se admirar que um homem das cavernas, acostumado a se comunicar oralmente, só desenhasse mapas para suas caçadas usando a saliva, ou que hoje nós escrevamos documentos em emuladores de máquinas de escrever, ou que nos casemos em capelas 3-D pixeladas? Alguma dessas é a melhor maneira de se desenhar um mapa, escrever uma carta ou casar? Ou mais especificamente, os dois últimos exemplos são as melhores maneiras que podemos imaginar de comunicação computacional com um amigo e de sentir de forma computacional as emoções do casamento?
Ir além dos paradigmas e metáforas é trabalho de artistas e estudantes, que nessa nova era também são obrigatoriamente programadores. O design computacional vai continuar nas mãos dos peritos em usabilidade até que nós reconheçamos que devemos adaptar os paradigmas de hoje para que se adequem melhor a um conjunto fixo e universal de comportamentos humanos. O futuro dos sistemas de computador, no entanto, vai depender de quem possa atingir sua alma inexprimível e reinventar essa essência e sua manifestação, ou, no caso, o ato unificado de criar conteúdo e formatação ao mesmo tempo em que por um lado abstrai o texto significativo, e por outro a ferramenta que usamos para executar esse ato (como o HTML ou o processador de textos), de acordo com sua própria visão. Só então o design dos sistemas de computador irá assumir seu devido lugar entre as artes e adentrar o grande ciclo de reinvenção e redefinição artística e espiritual, num chamado que se renova a cada geração.
Créditos a Ersin Y. Akinci – osnews.com
Tradução por Roberto Bechtlufft <info at bechtranslations.com.br>
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