Android: the return of the Unix wars?
Autor original: Jonathan Corbet
Publicado originalmente no: lwn.net
Tradução: Roberto Bechtlufft
Outro dia eu me diverti um bocado lendo este artigo do ZDNet sobre o “segredinho sujo do Android”. Ele defende que o fato do Android ser aberto teria levado a um aumento no controle mantido pelos fabricantes de celulares e operadoras de rede sem fio, e à fragmentação da plataforma. A Open Handset Alliance estaria em “frangalhos”, e os telefones com o Android teriam arruinado todas as conquistas do grande porta-bandeira da liberdade e da abertura, o iPhone. É claro que o Android é só mais do mesmo para a indústria de telefonia móvel, mas há algumas coisas que merecem ser discutidas.
Os autores parecem surpresos pelo fato da Open Handset Alliance não operar como um projeto de software livre, e pelo fato dos fabricantes não estarem alimentando um núcleo de software comum com as alterações que realizam. Isso é verdade: temos pouquíssimo código da HTC, da Samsung ou da Motorola, por exemplo, na distribuição Android. Mas isso já era de se esperar, por uma série de motivos.
Para começar, colocando as coisas de maneira bem simples, o Android ainda não é gerenciado como um projeto de software livre. O trabalho é realizado a portas fechadas no Google, e o código vez ou outra é “largado” no repositório público. É comum o código pintar um tempo depois do software começar a aparecer nos telefones. Quem não for da equipe do Google vai saber e opinar muito pouco nos rumos do desenvolvimento do Android; não há uma maneira prática e nem qualquer tipo de incentivo para se colaborar com o projeto.
Quando os fabricantes contribuem, geralmente é em níveis mais baixos, como no kernel. Algumas dessas contribuições seguem direto para os encarregados pelo kernel, o que é o mais correto. Outras ficam no repositório do Android. Mas independente de onde vão parar, as contribuições não costumam ser focadas em níveis altos, nem constituir o tipo de código visível ao usuário do qual o artigo trata. Os fabricantes preferem manter esse código para eles mesmos.
E eles podem fazer isso. Em nível de sistema, por escolha do Google, as licenças são permissivas. Se mais partes do Android fossem licenciadas sob a GPL, os fabricantes teriam que contribuir com suas alterações – ao menos com as alterações que fossem derivadas do código licenciado pela GPL. A decisão do Google de evitar a GPL pode até não ter sido boa, mas é motivada por um medo fácil de entender: o de que os fabricantes se recusassem a usar um sistema Android licenciado sob a GPL. Se o Google tiver que escolher entre licenças permissivas e a obscuridade (e a escolha é vista assim por muita gente), é mais do que óbvio o caminho que ele vai trilhar.
Outra queixa relacionada é a de que a abertura do Android permitiria que todos os fabricantes e operadoras incluíssem seu próprio código nos dispositivos que vendem. Esse código pode vir na forma de interfaces de usuário personalizadas, software que não presta para nada ou restrições de uso do dispositivo em questão. Essas inclusões costumam ser indesejáveis, porque contribuem para a fragmentação do sistema e são responsáveis por “recursos” que os usuários prefeririam não ter. O que está implícito aí é que um Android que não permitisse essas alterações seria uma plataforma melhor, com menos “segredinhos sujos”.
Como muitos já destacaram, o Android não é muito diferente de outras plataformas móveis em sua maleabilidade nas mãos dos fabricantes e operadoras. Portáteis baseados no Symbian ou no Windows Mobile também podem ser personalizados pelos fornecedores. Eles também podem ser atrelados a operadoras específicas, restringir os aplicativos que podem ser instalados e arruinados de muitas outras maneiras. O artigo apresenta o iPhone como uma plataforma independente, imune a esse tipo de manipulação, mas o aplicativo Google Voice e o controle imposto à App Store contam uma história diferente. O Android não resolveu esse problema (sim, é um problema) num passe de mágica, mas também não foi responsável por sua criação.
O MeeGo parece estar tentando combater a fragmentação: há várias regras a serem seguidas para se poder usar seu nome. Se isso vai adiantar nós não sabemos, até porque há vários dispositivos baseados no Android no mercado que não anunciam a procedência de seu software. E, apesar de não ter tanto medo da GPL quanto o Android, o fato é que o MeeGo não tem expectativas de crescer restringindo a flexibilidade de fabricantes e operadoras. Quando tivermos a sorte de contar com dispositivos baseados no MeeGo, veremos que eles foram bagunçados do mesmo jeito que os outros sistemas.
Resumindo, há duas preocupações envolvidas: a fragmentação e a liberdade. A fragmentação, obviamente, sempre foi terreno fértil para quem quer difamar o Linux. É claro que com o código aberto, e com tantas distribuições, o Linux tinha mesmo que seguir por muitos caminhos diferentes. Mas o Linux não se fragmentou do mesmo jeito que o Unix, vinte anos atrás. A principal diferença é o núcleo comum (o kernel, a camada intermediária e outras coisas) utilizado por todas as distribuições. Mesmo que coisas estranhas ainda sejam feitas nos níveis mais altos de distribuições específicas, aquilo que as move continua sendo o Linux. Pode-se dizer com alguma firmeza que o uso da GPL nesses níveis fez muito para prevenir bifurcações e manter todo mundo em sincronia.
O Android ainda roda o Linux por baixo dos panos, mesmo que seja uma versão estranha e limitada dele. Mas também se pode argumentar que boa parte do núcleo do Android não é mais licenciado sob a GPL. Portanto, embora o Android seja baseado no kernel do Linux, o resto do sistema lembra mais o BSD em termos de licenciamento. Isso pode tornar o Android mais suscetível à fragmentação; talvez ele marque o retorno das guerras do Unix. Ou talvez não; a maioria dos fabricantes geralmente acaba percebendo que sai caro se afastar demais da base original do sistema. Seja como for, é difícil de imaginá-los indo longe demais, já que o Google continua injetando recursos para desenvolver o Android em alta velocidade.
A liberdade parece um problema mais complicado. O fracasso do Nexus One como produto de mercado de massa foi encarado por alguns como um sinal de que os consumidores não se interessam muito pela liberdade como um todo. Mas vale a pena destacar algumas coisas, a começar pelo fato de que o Nexus One, em sua nova função como telefone para desenvolvedores, logo esgotou.
É claro que há algum interesse em hardware relativamente aberto, e um nível de interesse enorme no desbloqueio de celulares para o carregamento de distribuições alternativas e coisas do gênero. As contribuições ao CyanogenMod chegaram a tal ponto que o projeto teve que abrir um sistema Gerrit próprio para gerenciar o processo de análise. Eu suspeito que poucas pessoas que desbloqueiam seus telefones ou instalam um firmware novo precisem realmente fazer essas coisas para poder usar seus aparelhos. O que essas pessoas querem é a liberdade de alterar seus dispositivos e ver no que vai dar. Em outras palavras, o Android estabeleceu uma comunidade pequena, mas crescente, de desenvolvedores e usuários interessados na liberdade e em fazer uso total do hardware que adquiriram. Se tivermos sorte, essa comunidade vai crescer e abrir um mercado para fornecedores que vendam dispositivos abertos, resistindo às tentativas legais de se embarreirar a ação dos hackers. Se isso acontecer, coisas interessantes podem vir em seguida.
Se o Android tem um “segredinho sujo”, é o de que a liberdade funciona nos dois sentidos. É claro que empresas que adotam uma postura hostil em relação a seus consumidores (e há muitas delas no ramo de telefonia móvel) podem usar a liberdade oferecida pelo Android para fazer coisas que vão prejudicá-los. Mas essa liberdade também parece dar base para uma geração inteiramente nova de hackers e entusiastas que queiram fazer coisas interessantes com as plataformas computacionais modernas. O Android não piorou as coisas; aliás, parece que ele está é melhorando a situação.
Créditos a Jonathan Corbet – lwn.net
Tradução por Roberto Bechtlufft <info at bechtranslations.com.br>
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