Tecnologia: a coisa certa com o uso errado

Tecnologia: a coisa certa com o uso errado

Enfrentamos diversos problemas durante a longa caminhada da evolução humana, e buscamos insistentemente soluções para esses problemas, pois como seres viventes, queremos bem-estar e consequentemente felicidade. O problema é que nosso mundo não é um berço de bem-estar e felicidade, pois não surgiu com esse propósito, na verdade, não parece ter surgido com propósito algum.

Há uma cena clássica no filme “2001 Uma Odisseia no Espaço” de Stanley Kubrick onde, em uma época pré-histórica, um primata aprende a usar um osso para para caçar outros animais e defender seu território. Nesse instante, o primitivo ancestral do homem começa a perceber o potencial do uso de uma ferramenta, e a partir daí se inicia a jornada tecnológica da humanidade.

A tecnologia é o que nos permite obter os pré-requisitos para se estar bem e feliz, pois ninguém está bem com fome, sede, doente ou sem ter onde morar. Ela é a ferramenta que torna possível fazer a natureza trabalhar a nosso favor, e assim conseguirmos suprir nossas necessidades tornando o mundo um lugar melhor.

No contexto econômico atual, uma tecnologia, seja ela qual for, dificilmente atingirá o público senão pelo mercado e suas regras. Várias boas ideias jamais saíram do papel simplesmente porque não proporcionavam vantagem do ponto de vista financeiro. Para o mercado, a boa tecnologia não é necessariamente a que atende as necessidades das pessoas, e sim a que atende as necessidades do próprio mercado, e é uma grande ilusão acreditar que elas são sempre equivalentes. Muitos afirmam que o sistema econômico vigente é uma boa maneira de promover desenvolvimento tecnológico, pois estimula a competitividade e consequentemente gera bons produtos e serviços, pois quem não inova é eliminado do sistema pelo seu competidor. Isso de fato ocorre, mas com efeitos colaterais drásticos e bem conhecidos, que fazem o planeta e os seres que vivem nele pagarem o preço. E esse preço tem aumentado a cada dia.

O mercado sempre se preocupa em crescer (até onde, não sei), e faz isso fomentando a competição, ou como melhor conhecemos, a concorrência. Neste cenário, o trabalho, seja ele qual for, é considerado algo “sagrado” e digno de orgulho, mesmo que seja moroso, exploratório, tecnicamente inútil, burocrático, desnecessário ou até mesmo prejudicial em certo ponto, pois esse trabalho “inquestionável” é que faz as engrenagens do sistema continuarem girando. A cooperação é destacada no meio empresarial apenas como uma forma de juntar forças contra algo maior, e esse algo maior quase sempre é uma outra empresa, provavelmente com o mesmo pensamento.

A maioria das pessoas parece acreditar que grandes corporações e bancos são as causas dos problemas da má gestão e distribuição de recursos em nosso mundo, mas, na verdade, eles são sintomas de um problema maior: um sistema econômico criado com a ideia central de acumular muito nas mãos de poucos. Nesse cenário frustrante, nossa tecnologia é quase que exclusivamente usada para bombear dinheiro da base para o topo de uma pirâmide financeira aparentemente legal, porém imoral.

Não se cria algo do nada. O transistor não surgiu de uma hora para outra com uma lampada aparecendo acesa sobre a cabeça dos engenheiros da Bell Labs. Tudo que é desenvolvido hoje se baseia no conhecimento de ontem. Nada é 100% inovador ou original, e para chegar ao topo, devemos antes subir nos ombros de outros. Cientistas, inventores, curiosos, engenheiros, matemáticos, físicos, químicos, e inúmeros outros promoveram as bases no passado para que algo fosse feito no presente, e o presente certamente será a base para o nosso futuro. Nossa tecnologia é uma colcha de retalhos de conhecimentos científicos de muitos milênios, fruto de, mesmo que por vezes involuntária, cooperação. Não estamos aptos a produzir nada senão pela pré-produção de outros.

Devemos entender que a cooperação é o cerne do desenvolvimento tecnológico. Uma formiga em si é quase que desprezível, mas raramente você as encontrará trabalhando sozinhas. A competição só se justifica num sistema como o nosso, onde a escassez intencional é um mecanismo de lucro. Essa escassez nos força a competir e usar nossa tecnologia para resolver problemas do mercado quando deveríamos estar resolvendo problemas das pessoas.

A ideia de patente, ou direito autoral, só se faz necessária nesse ambiente de competitividade, pois cercear conhecimento tecnológico a um subconjunto ao invés do conjunto é no mínimo ineficiente. Se nada se faz do zero, temos o direito de alegar que algo que “criamos”, usando uma base de conhecimento milenar, promovida por inúmeros outros indivíduos que na maioria das vezes nem mesmo usufruirão de nenhum benefício dessa “criação”, é por direito nosso? Hoje presenciamos eventos bizarros como corporações tentando patentear formas geométricas de produtos, além de métodos de destravamento de telefones celulares baseados em como as pessoas mexem os seus dedos em uma tela. Não é de se espantar que atualmente uma empresa valha mais por suas patentes do que por suas instalações e colaboradores. Dessa maneira, concluímos que, quanto mais conhecimento uma organização detém (que na verdade não é originalmente dela), mais ela vale no nosso tão adorado mercado.

Vivemos uma economia ilusória. Nossas organizações são psicopatas e acumuladoras compulsivas, e nossa tecnologia é fortemente empregada para alimentar esse modelo de gestão de dinheiro e poder. Não há perspectiva para o fim da fome, doenças, guerras e miséria enquanto continuarmos achando que o que temos hoje é economia e que isso é aplicação tecnológica verdadeira. Ao contrário do que a maioria dos economistas podem pensar, eficiência tecnológica não é conseguir o máximo de dinheiro com o mínimo de investimento, mas sim conseguir o máximo de benefício humano com o mínimo de recursos.

Nossos recursos naturais podem ser melhor gerenciados através de uma ciência muito antiga conhecida como matemática. Os números são abstrações que nos permitem controlar o que nos é concreto. Desenvolvemos máquinas especialistas em lidar com números e excelentes candidatas a cuidar do que nos é realmente valioso nesse mundo. Mesmo assim, preferimos atribuir a gestão de nossos recursos a uma classe de indivíduos ineficiente, cara, volátil e corrupta, conhecida como políticos.

A meu ver, um sistema que permite que 1% da população mundial detenha 40% da riqueza do planeta não é uma boa opção para gerenciamento de recursos em nosso atual estágio de desenvolvimento tecnológico. Na verdade, sequer deveria ser uma opção. Que fique claro que não estou defendendo o socialismo ou o comunismo, pois para mim, funcionam tão mal quanto o nosso capitalismo, pois também são essencialmente sistemas baseados em moeda. A ideia de pobreza como algo inerente à condição humana de forma alguma se reflete como verdade. Só existe pobreza onde a tecnologia é mal aplicada, pois as necessidades humanas são fundamentalmente de cunho técnico. Alimentação, saúde, moradia, entretenimento, entre outras, são problemas de solução técnica, pois o cultivo de alimentos, a elaboração e aplicação de remédios e técnicas médicas, a construção de habitações, jogos e atividades recreativas, e várias outras, são todas promovidas por tecnologia. Quando se começa a produzir eficientemente soluções para essas questões (e falo da real eficiência), os problemas derivados destes também passam a deixar de existir.

O modelo econômico de nossa geração, será o entretenimento literário de gerações futuras, pois acredito que nossos descendentes olharão para nossa época e pensarão em como conseguimos sobreviver usando algo tão poderoso de forma tão errada. Isso, obviamente, se nossa sociedade não colapsar antes. O que espero que não aconteça.

De uma forma geral, se mudarmos a maneira como aplicamos nosso conhecimento tecnológico, mudamos pessoas, e se mudarmos pessoas mudamos tudo. Acreditamos na “mão invisível do mercado” como um dogma religioso, e isso não me parece nada correto. Não há solução instantânea, mudanças levam tempo, mas insistir em velhos erros apenas nos manterá com os velhos problemas.

O osso na mão do primata em 2001 é simbolicamente o princípio do que se tornaria nosso bem mais precioso e realmente importante, a tecnologia. É uma pena que muitos milênios depois, ainda não tenhamos entendido o seu real propósito.

 

André Luiz Delai

Colaborador eventual do website hardware.com.br. Possui nível técnico em eletrônica pelo Instituto Politécnico de Londrina (1998), graduação em Engenharia de Computação pela Universidade Norte do Parana (2004) e mestrado em Engenharia Elétrica pela Universidade Estadual de Campinas (2008). Tem experiência na área de Ciência da Computação, com ênfase em Hardware, atuando principalmente nos seguintes temas: hardware evolutivo, dispositivos embarcados (microcontroladores), dispositivos lógicos programáveis (FPGAs), programação de softwares/firmwares, além de outros. Atualmente trabalha no desenvolvimento de sistemas eletrônicos de comunicação.

Contato: adelai@gmail.com

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